Coluna assinada por Eduarda Nunes Quantas histórias de mulheres negras você leu? Digo, histórias escritas por elas mesmas?
As mulheres negras sempre foram atuantes em suas histórias, seja em África ou na Diáspora. E não só atuantes, como também protagonizaram várias lideranças, mas se a escrita da história oficial é um chororô pra dar qualquer visibilidade que seja para homens negros, que, mesmo homens, são negros; pros holofotes encontrarem as mulheres negras é quase como arrancar um braço e um dedão do pé do Homem Branco que desenha a ciência brasileira.
Mas elas sempre estiveram ali liderando nos quilombos e nos períodos pré, durante e pós-
abolição. Só que pra tomar conhecimento desses episódios tem que ter muita vontade, estar obstinada. Geralmente, a gente descobre essas “histórias internas da história” por alguém que entende “demais” do povo negro. Não disponível pra qualquer um saber, nem o google entrega de pronto, a gente tem que rebolar.
E se enquanto sujeita é difícil ser visibilizada, enquanto autora da própria história o quadro só piora. Em se tratando das Letras, a gente sabe que a mulher negra (e indígena) só tem espaço quando é pela vista de qualquer um que não elas mesmas. Tem mulher negra produzindo conhecimento desde que o mundo é mundo, esteja documentado ou não - e seja sobre a vivência dela ou não, inclusive - mas ela só tem funcionalidade se for passiva. Terceira pessoa, personagem fictício inspirado em fatos reais. Verossímil. Mas, pra ser autora não dá.
Algumas conseguiram estar visíveis depois que morreram: Maria Firmina dos Santos, maranhense, a primeira romancista negra da América Latina e Carolina Maria de Jesus, que é clássica em vários países do mundo, exceto no seu, são escritoras negras que hoje são reconhecidas, mas que morreram pobres e com pouca ou nenhuma credibilidade, por exemplo. Conceição Evaristo tá viva (glória!), mas quando começou a ter seus escritos valorizados ela já passava dos setenta anos. Recentemente fizemos até campanha para que ela tivesse sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas não rolou. Se isso foi de bem ou mal, vai de cada um (a interpretação).
Além da caneta, é importante pensar sobre a oralidade, ela que permitiu que muito das heranças negras não se perdessem e pudessem ter chegado aqui até hoje . E de uns 10 anos pra cá, a gente tem experienciado uma coisa que são as batalhas de Slams no Brasil. Tem-se o primeiro registro de 2008, em São Paulo, trazido da gringa (Estados Unidos) por Roberta Estrela D’alva e nada mais é do que um movimento poesia autoral falada, com algumas regras e muito ligada ao pow pow pow (reação) do público que decide quem ganha. Poesia falada como se fosse um cuspe, tudo pra fora de um vez e foi, praticado essencialmente por pessoas de periferia que contam do que acontecem em seus cotidianos em versos musicados e envolvidos por diferentes emoções. Se o slam é recente, a experiência do Slam das Minas é mais ainda. O que acontece, de novo, é que em espaços mistos, as mulheres são invisibilizadas (mesmo entre os brother).
Em Recife, o Slam das Minas chegou no segundo semestre de 2017 pelas poetas Patrícia Naia e Amanda Timóteo, que já vinham de experiências de saraus mistos pela cidade. Em entrevista, à época, Amanda me contou da surpresa e felicidade que elas sentiram ao ver o quanto de mulher que tinha coisas pra falar, versos pra recitar e que era ali que tavam se sentindo seguras pra isso: numa roda em que a regra principal é só mulher falar. Pra competição nacional do Slam Br – Campeonato De Poesia Falada, elas mandaram Bell Puã em 2017, que venceu e foi representar o Brasil na França na competição internacional, e, em 2018, Bione, artista brilhante, 16 anos, zero papas na língua, que tá chegando também no mundo na música e que ficou em segundo lugar na competição. Esse ano a última batalha final acontece esse sábado (26) na rua da Aurora, nos arredores do monumento Tortura Nunca Mais. O grupo é tocado por uma maioria de mulheres negras e atua desde então estimulando e inspirando as poetas intimidadas a contar um pouquinho do que tem guardado na alma, nas marcas e nas cicatrizes. Falar pra fora, gritar, jogar pra cima e observar em que colo cai. Seja em roda de poesia, seja em eventos das mais diversas ordens: elas estão lá e fazendo muito bem os seus trabalhos, diga-se de passagem. Além das minas, vários grupos de slams se formaram por todo o estado e vão dando o texto, inspirando pequenas revoluções diárias em todo canto de Pernambuco.
E nesse fim de semana Recife sedia o I Encontro Nacional de Escritoras Negras, o ENEGRAS. O evento é um espaço em que as mulheres negras vão, pela primeira vez, reunir escritos e trocar figurinha sobre essa longa jornada de disputa de narrativas com homens e mulheres brancas. Serão três dias de uma programação que pretende apresentar um panorama geral sobre as atuações das escritoras negras. Seja em mercado editorial ou no mundo das ideias, mulheres de todo o Brasil vem somar um pouquinho à discussão, que não poderia ser feita em outro espaço se não um dedicado totalmente para isso. Odailta Alves, escritora, poeta, professora e uma das organizadoras do Enegras comenta que mesmo os encontros literários exclusivamente femininos podem não ser espaços seguros do racismo, infelizmente.
Cerca de 30 mulheres, de diferentes gerações e linguagens da literatura, compõem o Enegras. Inaldete Pinheiro, fonte viva da história do movimento negro de Pernambuco, Odailta Alves, Suh Amorim, Adelaide, Miriam Alves, Joaninha Dias, Joy Thamires, Isaar, Lúcia dos Prazeres, Bixarte e Flora Rodrigues são algumas delas. Para saber mais informações sobre o evento, corre no Instagram! São esperadas mais de 200 participantes durante todo os três dias de programação, que divide espaço entre Recife e Olinda. A trajetória literária das mulheres negras é extensa e densa e é praticamente impossível falar sobre tudo porque sempre tem pontos que ficam descobertos e experiências incríveis que ficam de fora. Mas quem quer começar a fortalecer mulheres negras escritoras enquanto ainda estão vivas tem que começar de alguma forma. A gente tem um mundo muito rico à disposição e o resto se complementa pela boa vontade. Apoie a produção literária negra local, nacional, internacional e se dê a honra de ver o mundo a partir das mãos que o sustentam até hoje.
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