Reportagem por Emília Prado / Edição: Luane Ferraz e Bruno Vinícius
Ilustração: Larissa Constantino
Uma em cada quatro meninas se casa antes dos 18 anos no Brasil, é o que lança o relatório de Situação da População Mundial do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas), da Organização das Nações Unidas. O casamento infantil é considerado pela ONU um tipo de violência contra mulheres, gênero que compõe a maior parte da estatística. A pesquisa, divulgada no último dia 30 de junho, leva em consideração que, entranhados na sociedade, os valores patriarcais regem destinos de meninas brasileiras tornando o casamento, muitas vezes, a opção de fuga mais viável para realidade em que vivem.
Em Pernambuco, a prática do casamento infantil é comum em municípios do interior e até em comunidades periféricas da Região Metropolitana, onde a união não é vista com estranheza. O Casamento, principalmente para mulheres em situação de vulnerabilidade, é culturalmente sinônimo de segurança financeira e até sobrevivência. Dados da Instituição Girls Not Brides revelam que meninas de famílias com menor condição econômica têm chances três vezes maiores de casar antes dos 18 anos do que meninas de famílias com maior condição econômica.
De acordo com o seu código Civil, a lei brasileira entende que adolescentes entre 16 e 18 anos devem ter a autorização de ambos os pais/responsáveis ou permissão judicial para se casar legalmente. A Lei 13.811/19 é datada em 12 de março de 2019 e a responsável pelo Projeto de Lei que levou a alteração de um dos seus principais artigos foi a então deputada federal Laura Carneiro (DEM-RJ).
Negação à educação interrompe futuro de meninas Essas estatísticas são refletidas na história de Mônica Souza. Ela nasceu no povoado de Muruabeba, em Surubim, cidade do Agreste Pernambucano, há 46 anos. Filha de um agricultor e uma professora do ensino básico, Lula e Adriana, respectivamente, Mônica conheceu Otávio, com apenas 12 anos de idade. Na época, o rapaz tinha 19. A relação entre os dois evoluiu rapidamente e quando ela completou 14 anos, o casal passou a dividir o mesmo teto em Nazaré da Mata, Zona da Mata de Pernambuco, e já se preparavam para receber o primeiro filho.
Apesar de ter uma figura simbólica da educação dentro de casa, Mônica conta que cabia ao seu pai, chefe da família, decidir qual seria o futuro dela e da sua irmã, Mere. Assim, aos oito anos, ambas ainda não haviam compartilhado do ambiente escolar. “Ele me acordava às cinco da manhã e íamos juntos para a roça. Quando Mere fez oito anos também foi. Ele só não queria que a gente estudasse”, relembra.
Sem ter estudado biologia, Mônica, ainda criança, achava que os bebês nasciam pela boca. Apesar de ver graça no que a imaginação pôde criar na época, entende como teria sido determinante receber, de alguma forma, orientações sobre proteção sexual e como funciona o próprio corpo. “Para mim, ficar com uma pessoa era beijar, abraçar e só. Eu não sabia que tinha outras coisas. Fiquei abismada quando ele começou, pensei ‘meu Deus do céu, o negócio é assim?”, conta.
Assim como foi para Mônica no passado, em 2020 a história ainda se repete para muitas garotas. O mesmo estudo da UNFPA aponta que meninas que possuem apenas o ensino primário têm duas vezes mais chances de se casar em relação aquelas que completaram o ensino médio ou superior. Em números, 30% da evasão escolar feminina está ligada ao casamento infantil.
O fato é que há um senso comum de que o início da menstruação é o marco de que as mulheres podem gerar filhos, mas a menarca não é aval para reprodução, muito menos um indício de maioridade para elas. A enfermeira obstetra Camila dos Santos, que trabalha na maternidade do Complexo Hospitalar do Imip, no Recife, afirma que recebe com frequência grávidas menores de 18 anos.
“A partir da menstruação, o corpo mostra alguma preparação para gerar um bebê, mas não é só isso. A consciência corporal é uma coisa que ajuda muito no parto, traz calma, tranquilidade. O que vemos é que meninas muito novas geralmente não têm essa estrutura emocional, chegam para parir com medo da dor, inseguras, e isso dificulta no processo como um todo”, avalia. Gravidez precoce como um sintoma Em termos regionais, o IBGE de 2015 aponta que no Brasil, o Sudeste lidera o ranking (49.513) de casamentos de menores de 19 anos, seguido pelo Nordeste (33.868), Sul (16.815), Centro-Oeste (11.996) e Norte (10.613). Estes dados posicionam o país em quarto lugar a nível mundial quando se trata da problemática.
Um dos principais fenômenos vinculados ao casamento infantil é a gravidez na adolescência. De fato, quando há primeiro uma gestação, o desejo de se casar aparece como a segunda motivação. Estima-se que 90% dos casos de gravidez na adolescência no mundo são com garotas casadas. O Brasil reserva a sétima maior taxa de gravidez entre menores de 18 anos.
Quando faz uma retrospectiva mental, Daniela Nascimento, 37 anos, percebe que a sua história atravessa as duas problemáticas. Aos 13 anos, teve sua primeira relação sexual com Isaque, primeiro namorado, futuro marido e pai dos seus filhos. “A gente se relacionou uma vez e eu já fiquei com suspeita de gravidez. Quando minha mãe descobriu disse que eu teria que morar com ele por causa do ‘bucho’. Não me deu nenhum apoio.”, conta.
Com a chegada da menstruação, a suspeita da gravidez foi descartada, mas o casal já estava morando junto e não demorou muito para que Daniela assumisse o novo papel de mãe. Aos 14, engravidou da primeira filha, Vitória. Depois de um ano, de Tainá e, cinco anos mais tarde, teve Luan. “Eu tinha esse sonho de casar na igreja e de ter minha festa de 15 anos. Mas, quando eu tinha 15 anos, já tinha quase dois filhos, então não tive nenhum desses dois privilégios.”
Ao todo, foram nove anos de casamento marcado por uma rotina de agressões físicas e psicológicas, submetidas principalmente pelo medo e falta de independência financeira de Daniela. Quando completou 23 anos, ela percebeu que tinha passado toda a sua vida sendo sustentada por alguém. “Eu escutava da minha mãe ‘ruim com ele, pior sem ele’”, lembra. O casamento transgeracional Vitória esperou a separação para contar à Daniela, que, algumas vezes, acordava e encontrava o namorado da mãe sentado na beira da sua cama, olhando para ela. A menina, com 11 anos na época, não havia contado por medo de ser chamada de mentirosa.
Era 2009, quando mãe e filhos saíram de casa após a separação com Isaque, pai das crianças. Foi preciso paciência, mas juntos construíram do chão a própria casa em um terreno pequeno no bairro da Vila da Fábrica, em Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife (RMR). Vitória, Tainá e Luan já estavam com 11, 10 e cinco anos, respectivamente, e ficavam sozinhos em casa enquanto a mãe trabalhava o dia inteiro.
Aos 11 anos, Vitória se interessou por um vizinho quatro anos mais velho que ela, e Daniela permitiu o namoro. Depois de três anos, a adolescente começou a ter vida sexual ativa e sempre conversou com a mãe sobre o assunto. “Desde o início do relacionamento eu ensinava a ela sobre proteção na hora do sexo, mas aos 14 anos, ela ficou grávida da minha primeira neta”, conta.
Menos de um ano depois do nascimento da bebê, Daniela recebeu a notícia que seria avó novamente. Desta vez, era Tainá que estava grávida, aos 13 anos. Não demorou muito para que a duas filhas saíssem de casa. Para Daniela, a história, na verdade, parecia se repetir.
Em 2019, Vitória conseguiu um estágio como Jovem Aprendiz. O próximo passo é tentar a graduação no curso de administração. Já Tainá é dona de casa e não tem planos de concluir os estudos. Daniela insiste na retomada, mas diz que enxerga muito de si mesma na filha do meio, e que, de certa forma, entende a sua posição.
Na casa do morro da Vila da Fábrica restaram Luan, hoje com 15 anos, e a mãe. Mesmo com a casa mais vazia, Daniela conta que nunca esteve tão cansada. Sai de manhã para trabalhar e só volta à noite. Atualmente, a manicure aluga um espaço onde faz outros serviços, como design de sobrancelhas e depilação, mas pensa em fechar o seu negócio e procurar um emprego, pela segurança que a renda fixa traz.
“Minha rotina é só trabalho. Às vezes vou para a academia, mas dou prioridade a ficar com meu filho, descansando em casa. À noite, ele vai para a escola e eu fico aqui no meu sofazinho, assistindo televisão. O almoço eu preparo todo dia e deixo pronto para ele esquentar. Quando chego do trabalho, ainda tenho que preparar a janta. E as tarefas da casa são todas eu que faço também, Luan só ajuda quando eu insisto muito, é como se fosse um marido”, conta, em tom de brincadeira. Ciclo de violências na vida
A conquista do primeiro emprego como telemarketing não foi fácil para Beatriz*, moradora de Olinda, hoje com 24 anos. “Ele pegou o meu celular, desligou o despertador e escondeu minha chave. Fez de tudo para atrapalhar, mas eu fui”. O êxito profissional se transformou em um verdadeiro caos. Isso porque desde o primeiro salário, João*, o então marido, entendeu que as despesas do lar não eram mais dele. Assim, Beatriz passou a cobrir todos os custos e adiar o sonho de renovar suas roupas, sapatos e celular, o mesmo aparelho dos seus 14 anos.
Ela conta que as marcas de uma relação abusiva não estão visíveis no seu corpo, mas fazem parte da memória dos seus 7 anos de casamento. “João nunca me bateu, mas as palavras dele machucavam e palavra dói mais que um tapa, né? Ele me manipulava. Se eu vestisse um short, dizia que tava feio, reclamava quando eu usava lápis de olho, batom, só abria a boca pra me colocar pra baixo, era horrível.”
João tinha 26 anos quando, ainda casado, começou a se relacionar com Bia. Na época, ela era uma garota de apenas 13 anos. A diferença de idade entre eles e o fato dela ainda ser um menina, não foi impeditivo para ele, nem visto com o estranheza pela família ou vizinhança, onde os dois moravam próximos. João era conhecido por ser dono de uma lan house local.
No entanto, foi perda da virgindade precoce da garota, antes mesmo de oficializar o casamento, o motivo para a sua expulsão de casa, o que, consequentemente, a levou a se afugentar em um casamento. O início de uma geração de problemas em cadeia.
“Nessa época, minha cabeça ‘tava’ virada, porque eu comecei a me descobrir e fui morar com uma pessoa que eu não tinha conhecido bem, foi meu primeiro homem. Antes eu não pensava em casar, queria curtir a vida, estudar, ainda não tinha uma profissão em mente, mas queria terminar meus estudos”, conta.
Uma pesquisa de 2019 feito pela Fundação Abrinq mostra que a maior parte das meninas casadas ou divorciadas que torna-se mãe antes dos 20 não conseguem completar o ciclo de estudo. No Norte e Nordeste do Brasil, o percentual é ainda mais dramático: as mães adolescentes que não concluíram o Ensino Fundamental passa dos 30%.
Foi o caso de Beatriz. Em 2012, aos 16, continuava casada com João e já era mãe de dois. Deu luz à Clara* e Danilo*. Quando o filho caçula entrou na escola, Beatriz tentou retomar os estudos, mas encontrou impedimento mais uma vez no machismo presente no matrimônio. “Fui pedir a João para fazer a inscrição da prova do Enem na lan house. Ele disse “Não vou fazer não. Pra quê? Tu não vai passar, tu vai perder teu dinheiro, que tu é burra’’, relembra. O que as políticas públicas estão mudando? As consequências do casamento infantil para uma menina podem ser pouco explícitas, já que a própria união não é encarada como um tipo de violência. A formação educacional interrompida, problemas de saúde quando há gravidez e parto precoces, trabalho doméstico não remunerado e dependência financeira do marido são desdobramentos prováveis e dificilmente contornados no decorrer da vida daquela mulher.
Os principais programas sociais que buscam acabar com o casamento infantil partem de ONGs internacionais que priorizam questões de infância e educação, como Unicef e Visão Mundial, ambas as instituições atuam em Pernambuco.
Em 2019, a Secretaria da Mulher do Recife lançou o programa Empodera em parceria com o Centro das Mulheres do Cabo e o Unicef. O projeto capacita meninas para serem liderança em suas comunidades, promovendo palestras e rodas de diálogo sobre questões de gênero, saúde, participação política e empoderamento econômico. A segunda etapa do projeto incluiu os meninos na roda para aprenderem e conversarem sobre novas masculinidades. Segundo o relatório da UNFPA, essa é uma das medidas mais eficazes de combater o casamento infantil.
O Empodera segue ativo em tempos de isolamento social. Meninas de 12 a 19 anos, das comunidades de Brasília Teimosa, Alto de Santa Terezinha e do Pina, continuam se reunindo pela internet para perceber as relações de gênero na sociedade e mantêm momentos de cuidado virtual com terapeutas do projeto.
Cássia Jane de Souza, coordenadora pedagógica do programa e educadora social no Centro das Mulheres do Cabo, confirma o conceito do casamento infantil como abuso, já que a exploração sexual das meninas é um dos principais caminhos para o casamento infantil. “A nossa cultura naturaliza o abuso da menina, faz a sociedade enxergar essa relação como uma forma de cuidado com ela, porque é menos uma boca na casa dos pais. Quando adolescente, a menina é invisibilizada, mas ao ganhar o papel de mãe, lhe é conferido um status, sobretudo nas periferias”, explica. “Ela vai ser reconhecida no posto de saúde, vai ser a grávida da casa, vai ganhar chá de bebê. É o cuidado que ela nunca recebeu.”
De acordo com a coordenadora, muitas meninas não sabem a quem recorrer em situações de exploração sexual ou como formalizar uma denúncia de abuso, algumas têm medo do Conselho Tutelar, mas nem sabem como podem ser ajudadas por ele. Por isso, um dos objetivos do projeto é a conscientização dos direitos sexuais e reprodutivos e do papel do Estado em casos de violência ou falta de garantia desses direitos, diminuindo as chances de permanecerem numa relação abusiva ou se calarem em situações de violência. Cássia alerta: “É urgente discutir as opções de um projeto de vida com elas e necessário o enfrentamento da reprodução de um ciclo de pobreza e desigualdade que vem da mãe, que veio da avó e se perpetua.”
*Alguns nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a identidade
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