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Andar com fé eu vou e com raiva também

Por Elizabeth Souza

Ilustração: Gabriella Borges

Estudos apontam que a religião pode ser considerada um meio de alcance da espiritualidade e de uma aproximação e compreensão dos sentimentos inerentes aos seres humanos. Dentre eles, a raiva costuma dividir opiniões na sociedade. Para alguns é algo que deve ser expressado; para outros, reprimido. Referente a esta última opinião, a raiva, dentro de uma lógica racista, também costuma vir carregada de estereótipo quando relacionada a mulheres negras, a quem é conferido a personificação da agressividade. Sendo assim, como as religiões, dentro de suas crenças e costumes, lidam com esse sentimento?


Raiva pela ótica religiosa

Primeiramente, é importante avaliar que em uma sociedade racista, como a nossa, pessoas negras são consideradas apartadas de suas humanidades, sujeitos ausentes de uma autonomia racional sobre os seus próprios sentimentos. O estereótipo “negra raivosa” é exemplo disso, pois retira da mulher negra um direito intrínseco à sua humanidade: expressar emoções.


De acordo com Vanessa Barboza, articuladora social no Movimento de Mulheres Negras Evangélicas do Brasil, o campo evangélico é diverso em suas doutrinas e interpretações bíblicas, que são realizadas de forma particular. No que se refere à raiva, Vanessa afirma que há um consenso sobre submetê-la ao poder de Deus, para que não resulte em práticas danosas à sociedade.


“Penso que há um receio em que a raiva seja um gatilho para práticas de comportamentos subversivos nas relações de poder na sociedade e na igreja. Quando há uma forte defesa do conservadorismo, há também um forte discurso de negativação da raiva, tentando aproximá-la muito mais de um viés diabólico do que humano, como de fato é”, comenta.


Atrelado a essas interpretações e submissão, há um terreno propício para o controle dos corpos, que muitas vezes ocorre de forma despercebida. “Seletivamente se utiliza de trechos bíblicos para tentar reforçar esse controle no sentido de que o ‘corpo dominado’ é o que agrada a Deus”, explica a articuladora social.


Para a doutrina espírita a raiva é vista como um descontrole emocional que precisa ser gerido de acordo com o ensinamento deixado por Jesus Cristo: “amai-vos uns aos outros e sereis felizes”, como conta a diretora de Integração Federativa da Federação Espírita Pernambucana (FEP/DIFE), Ednar Santos. “Ele [Jesus] falou no sentido de incutir em nós um esforço cotidiano para, sobretudo, amarmos os que nos inspiram indiferença, ódio ou desprezo”.

Segundo Ednar, o Espiritismo também considera importante o caminho de autoconhecimento como busca de uma harmonização emocional. “Uma das grandes propostas do Espiritismo para o ser humano educar sua raiva e outras emoções ruins é o autoconhecimento. Segundo os Espíritos Superiores, esse processo é a chave do desenvolvimento individual, com repercussão benéfica no coletivo”, explica.


Religioso da Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, Ramon Bertoldo analisa que, inicialmente, a raiva não é algo negativo, mas quando não bem trabalhada pode se tornar um problema. “Pois a raiva que passa do controle para o descontrole se torna ira e consequentemente um dos sete pecados capitais, pois é uma condição sentimental que conflita internamente o indivíduo fazendo criar sentimentos de destruição, vingança e até mesmo a morte”, constata.


Ainda de acordo com Ramon, expressar sentimentos é afirmar a humanidade que preenche nosso ser. “A raiva, que traz toda essa problemática, pode nos humanizar a partir do momento em que encaramos esse sentimento de forma positiva. Quanto mais humanos formos, mais de Deus seremos”, conclui.


No Candomblé, religião de matriz africana, cuja ligação com a natureza é uma de suas características principais, há uma busca constante pelo equilíbrio. Para a Yalorixá Miriam de Xangô, a fim de que não haja empecilho na busca por esse equilíbrio, é importante saber controlar os sentimentos, dentre eles a raiva.


“Devemos ter bastante cuidado, é preciso buscar o equilíbrio junto ao nosso Orí para que a raiva não se torne algo negativo dentro de nós. Tendo isso, ela pode ser positiva sim, nos impulsionando a reagir contra injustiças”, declara.


Raiva, uma reação positiva


A reação citada pela Yalorixá Miriam de Xangô é, inclusive, uma das características da raiva. No podcast Afetos, realizado pelas comunicadoras Gabi Oliveira e Karina Vieira, esse tema foi um dos episódios publicados em junho de 2019. Nele, Gabi levantou o questionamento sobre o sentimento da raiva servir como impulso para mudanças sociais, usando como exemplo o caso de Rosa Parks, ativista dos direitos civis do negros nos Estados Unidos, que ganhou repercussão quando, em 1955, ela se negou a ceder seu acento no ônibus para um branco, em Montgomery, no Alabama, época em que vigoravam leis segregacionistas.


Após o ocorrido, Rosa Parks foi presa, o que desencadeou uma onda de protestos que motivou a extinção das segregações nos transportes públicos dos EUA. Ao citar o exemplo, Gabi questiona qual sentimento teria movido Rosa Parks a reagir daquela forma, e em seguida conclui: “Não consigo pensar que a Rosa não deixou de sentar naquele banco por amor, ela estava com raiva”.


Portanto, é interessante perceber os benefícios que existem em não reprimir o sentimento da raiva, inclusive como forma de desarticular discursos falaciosos que insistem em deslegitimar a existência de pessoas pretas. O estereótipo “negra raivosa/agressiva” é uma uma dessas estratégias de bloqueio de nossas ações contra o sistema racista e genocida. “É uma imagem construída pela branquitude para tentar nos imobilizar em nossa indignação legítima e autodefesa, e para nos destituir de humanidade”, afirma Vanessa Barboza.


Nos deixem sentir


Motivos não faltam para que mulheres negras brasileiras sintam raiva, é munição para enfrentar as atrocidades diárias de uma sociedade racista que se edifica em meio às desigualdades. Por isso ela causa medo, censura por seu poder de dar voz a dores e silenciamentos que nos sufocam, quando queremos respirar.


Não há nada de errado em ter e expor esse sentimento, nos deixem sentir. Citando a ativista e mestra em Direito Winnie Bueno, “tenho razões infinitas para ter raiva, você é que deveria se questionar porque você não tem raiva das mesmas coisas que eu”.

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