Por Juliana Aguiar
"Não é assunto de mulher". Como uma premissa que, repetida tantas vezes resultaria no afastamento das mulheres do cenário político, a frase, fruto de uma sociedade patriarcal, delineou, ao longo do anos, os espaços ocupados pelo gênero feminino nessa esfera, adiando a construção dos direitos de cidadania e resvalando na participação eleitoral. Como movimento de conquista desse espaço, militantes, coletivos e iniciativas não governamentais têm desenvolvido campanhas de incentivo ao voto em mulheres, com todos os seus recortes: brancas, negras, indígenas e LGBT+. Embora as ações visem ampliar a representatividade em todos os cargos de poder, seja legislativo ou executivo, ainda resta uma questão: basta votar em mulheres para garantir políticas públicas eficazes para o gênero nos municípios?
A falta de senso de pertencimento talvez seja a questão central para refletir sobre a pequena presença das mulheres na política institucional, mas o aumento da participação feminina em cargos de poder pode ser um dos únicos caminhos para ampliar e fortalecer políticas públicas eficazes para mulheres. Em um país em que são maioria, as mulheres representam apenas 15% das vagas na Câmara dos Deputados, fazendo o Brasil ocupar a 133º posição entre 192 países no ranking divulgado pela União Interparlamentar Internacional (UIP) em 2019. Nas câmaras municipais das maiores regiões eleitorais de Pernambuco: Recife, Jaboatão dos Guararapes e Olinda, elas ocupam 15%, 4% e 11% das cadeiras, respectivamente. Às vésperas de novas eleições municipais, confrontar dados de eleitores e ainda se deparar com os baixos números de candidatas mulheres, em um estado em que são maioria, é desolador. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as mulheres também são maioria entre o número de pessoas que vão para as urnas neste domingo (15), representando 53% dos votantes, e o estado é o segundo com maior eleitorado feminino. Em Olinda, na Região Metropolitana do Recife, a proporção chega a 56%. Entre os candidatos, a diferença é abissal: são 182 mil mulheres concorrendo ao pleito municipal, frente a 351 mil homens. Na corrida para o Executivo, apenas 1 a cada 10 candidaturas é de mulher e na disputa pela vereança elas representam 34% dos candidatos.
Pautar mais políticas para mulheres é inspirar outras mulheres a ocupar os cargos de poder
Para a doutora em Antropologia Maria Cecília Patrício pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que pesquisa gênero e sexualidade, votar em mulher é um primeiro passo para a conquista de políticas públicas favoráveis às mulheres. "Quanto mais mulheres no poder, mais as mulheres serão vistas, atendidas, e a sensibilidade nas causas estarão mais presentes nas políticas dos estados. A quantidade é importante, quantidade que não seja singular, mas plural, com a presença de mulheres brancas, negras, indígenas e LGBT+", explica. De acordo com ela, a presença feminina nos cargos de poder gera uma condição de pertencimento para as mulheres. "De se ver representado, de ver a sua categoria, de gênero, de orientação sexual, raça, dentro de uma política pública. Olhar para o que me governa e ver que eu sou representada ali", completa. A antropóloga destaca, entretanto, que alguns fatores corroboram para a manutenção da estrutura com baixa representatividade feminina. "Podemos atribuir a um ultraconservadorismo que tem tomado a nossa realidade, aos partidos que são dirigidos por homens ou pensados a partir de perspectivas fundamentalistas, reproduzindo dentro do partido alguns dogmas e estruturas de instituições religiosas, que não deveriam estar ligadas ao estado por ser laico".
A representatividade é um fator de extrema importância na política brasileira e ela pode acontecer de duas formas: simbólica e concreta. De forma simbólica, ela versa sobre o efeito das mulheres se verem ocupando aquele espaço. No caráter concreto, representa o engajamento pela luta das mulheres, ou seja, a partir de instrumentos utilizados pelo Estado para a resolução de problemas sociais latentes, como: acolhimento em casos de violência doméstica, equiparação salarial entre os homem e mulher, assédio sexual no trabalho, parto humanizado, aumento no número de creches e licença maternidade. Atualmente, nem todas as eleitas praticam representatividade concreta. Vai ter a ver com coerência, com que a gente defende. No fundo, não basta ser mulher e não representá-las no conteúdo.
De acordo com a mestre em Ciência Política pela UFPE, Renata Cavalcanti, a representatividade acaba exercendo um papel essencial na construção democrática. "Sabemos que quando as mulheres começaram a se inserir na arena eleitoral, na política, os homens também começaram a perceber que são necessárias políticas voltadas para as mulheres de maneira específica". Em sua dissertação de mestrado, a cientista analisou todos os projetos de lei das deputadas federais de 1995 até 2018, cerca de 5 mil proposições, para saber quais eram os temas que as deputadas mais abordavam. "Elas propõem projetos sobre todos os eixos, mas focam muito mais em questões sobre lei e crime, trabalho e educação, e crimes contra a mulher", conta. Foram identificadas ainda proposições relativas à amamentação no horário do trabalho, violência doméstica e estupro de vulnerável.
Renata destaca, no entanto, que não basta eleger mulheres para que existam políticas públicas efetivas voltadas para o gênero. "Evidências apontam que o gênero não é um fator determinante de política pública, mas, na verdade, o partido é um fator bastante relevante. Elas sabem que a obrigação política delas é representar as pessoas no geral, elas reconhecem que existem grupos mais vulneráveis que outros, mas ao mesmo tempo não se limitam a um interesse. Elas levam em conta o que o partido tem como agenda e o que os eleitores delas querem", diz. De acordo com a pesquisadora, algumas pautas mais progressistas, relacionadas às conquistas feministas, tendem a ser propostas por partidos de esquerda. "Os partidos têm percepções diferentes sobre o que é o direito da mulher. As pautas voltadas às mulheres estão nos dois espectros, mas a percepção sobre o tema é diferente", destaca. "Há uma literatura que diz que os partidos de esquerda oferecem maiores espaços para a representação do interesse da mulher, quando se fala em assuntos pós materiais [transformação de valores individuais de materialistas, físicos e econômicos para novos valores individuais de autonomia e auto-expressão], mas isso não quer dizer que uma deputada de direita não vá propor algo sobre ou para a mulher", completa. Apesar da tendência dos homens, em sua maioria de partidos de esquerda, defenderem pautas voltadas para as políticas pública das femininas, para Renata "é importante ter mulheres na política, em questão descritiva, ou seja, em questão de número, porque faz parte da democracia compreender a sociedade como um todo". Há ainda outros fatores no centro do diálogo. Estudo publicado na revista Health Affairs, analisando dados de 3.167 municípios brasileiros, entre os anos de 2000 a 2015, concluiu que quanto mais mulheres na política, menor é a taxa de mortalidade infantil. Alguns estudos revelam, ainda, que quanto mais mulheres no poder, melhores são as políticas públicas daquele local porque elas investem mais em saúde e educação, melhorando qualidade de vida e consequentemente diminuindo índices de corrupção.
FORMAÇÃO PARTIDÁRIA
Embora seja um importante canal de difusão das principais propostas dos candidatos ao pleito eleitoral do biênio, assistir ao guia eleitoral é, por si só, uma experiência visual exaustiva. Nos 10 minutos em frente à TV, duas vezes por dia, baixa representatividade feminina ecoa. O Partido da Mulher Brasileira (PMB), liderado em Pernambuco por dois homens, é o que tem a segunda menor representatividade feminina no estado, com 30% de candidatas, seguido pelo Partido Novo que garante a candidatura feminina em 26,6%. Os maiores índices de candidaturas encabeçadas por mulheres estão no PSTU (66,6%), seguido pelo PCB (50%), o UP (37,9%) e PSOL (36,8%), partidos ideologicamente de esquerda. PT, PTB, PDT, PCdoB, Rede e PCO também estão entre as entidades que garantem pouco mais de um terço de representantes femininas.
A presença delas, inclusive, garantida pelo decreto eleitoral de 2009, que determina o quórum mínimo de 30% de candidaturas de cada gênero e no máximo 70% nos partidos. Antes disso, a lei previa a reserva de 30% das vagas para as mulheres, mas os partidos deixavam essas vagas vazias. A cota versa sobre a participação na corrida eleitoral, porém não garante que sejam eleitas. Há, ainda, o desafio de conquistar votos do eleitorado masculino e receber suporte e investimento efetivos do partido para realização das campanhas. A tentativa de equiparar a presença feminina nos espaços de poder, no entanto, deve levar 95 anos. Esse é o prazo calculado pelo relatório anual do Fórum Econômico Mundial, levando o ritmo atual em que as mulheres se inserem no cenário político. CONQUISTA HISTÓRICA
As brasileiras garantiram o direito de votar e de serem votadas há menos de 100 anos no Brasil. O movimento pelo sufrágio feminino foi iniciado lá atrás por Leolinda Figueiredo Daltro, com a formação do primeiro partido feminino, em 1910. A sua luta pelos direitos políticos foi endossada pela bióloga Bertha Lutz, uma das principais líderes feministas do País. Em 1928, depois de anos de mobilização de mulheres pelo respeito à cidadania, Alzira Soriano se tornou a primeira prefeita da América Latina, eleita pelo Rio Grande do Norte. Na época, ainda não havia a permissão na legislação brasileira para que as mulheres pudessem votar e o estado havia concedido o direito no ano anterior, sendo o pioneiro. Em 1932, veio a conquista do sufrágio, concretizado no Código Eleitoral. Dois anos depois, a eleição da médica Carlota Pereira de Queiroz como primeira deputada federal do estado de São Paulo. No ano seguinte, a professora Antonieta de Barros se consagrou a primeira parlamentar negra do Brasil, eleita em Santa Catarina.
CONSTRUINDO O PERTENCIMENTO
De acordo com a coordenadora da ONG Elas no Poder, Mari Abreu, aumentar o número de mulheres independente do espectro ideológico partidário melhora a qualidade da democracia. "Isso é um dado muito importante, não adianta pensar em eleger mulheres que concordam só com o que a gente pensa. Os eleitores não são homogêneos e existem mulheres para todas as pautas propostas", defenda a gestora. A cientista destaca ainda os reflexos positivos de lideranças femininas à frente de um governo. "As mulheres pensam mais na sociedade como um todo. Homens são mais egoístas, tendem a ouvir mais as pessoas que já conhecem, confiam e rechaçar dados científicos", relata, lembrando de pesquisa realizada pela Universidade de Cambridge em 2018 sobre o perfil das governantes do gênero, que versa sobre como o cérebro das mulheres apresenta uma tendência natural maior para a empatia e as relações humanas e o interesse público.
A ONG atua para capacitar as mulheres de todos os partidos, incentivando-as a ingressar na vida política através de pesquisas, informações e formações. Em seguida, parte para etapas práticas: planejamento estratégico de campanha, formação de equipe, captação de recursos, mobilização de eleitores e preparação para entrevistas. "É muito interessante porque a gente inicia nosso curso perguntando se as mulheres têm interesse em seguir na vida política, apresentamos os dados, os obstáculos e refletimos sobre o machismo estrutural… Ao final, mais mulheres levantam as mãos e confirmam o desejo de se candidatar do que no início do curso", conta Mari. Dos 33 partidos no TSE, mulheres que saíram candidatas em 30 partidos participaram da mentoria oferecida pela ONG Elas no Poder. "Não orientamos a escolha do partido, isso fica a critério de cada mentorada. Nós oferecemos as ferramentas", frisa. Ao todo, foram mais de mil mulheres realizaram os cursos, e 530 saíram candidatas em 25 estados. "Com o resultado das eleições, queremos apresentar o levantamento de quantas serão eleitas", completa.
Em uma sociedade patriarcal, todo caminho trilhado por pernas e projetos erguidos por braços femininos é tortuoso, cheios de espinhos e de terreno pouco fértil. Segundo Mari, a grande dificuldade enfrentada pelas mulheres durante as campanhas é a visibilidade, porque normalmente recebem menos investimentos dos partidos. "Todos os partidos políticos estão em débito com as mulheres, tanto na formação política quanto no apoio. Os partidos tendem a apoiar candidatos homens nas eleições proporcionais por atribuírem que eles têm mais chances de vencer. Ser nomeada a um cargo majoritário, por exemplo, é um grande desafio dentro do partido. Muitas das mulheres não tinham ideia se seriam candidatas a prefeita, vice ou vereadoras, dependiam dos partidos", conta. Nesta eleição, a cientista política acredita que o maior desafio é a pandemia. "As mulheres já tinham dificuldade de tempo, de recurso, agora com a pandemia as coisas pioram, as mulheres são as que cuidam mais de idosos, de crianças, da família. Com isso, o tempo fica escasso. Elas também não são tão conhecidas como os homens, e como a campanha passou a ser essencialmente digital e televisionada, é difícil alcançar novos eleitores", afirma.
Com o intuito de aumentar a presença de mulheres negras no poder, a campanha Eu Voto em Negra tem fortalecido candidaturas em toda a região Nordeste através do direcionamento e mobilização direta. A iniciativa é fruto do Projeto Mulheres Negras e Democracia, articulada pelas organizações Casa da Mulher do Nordeste (CMN); Centro das Mulheres do Cabo (CMC) e Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR/NE), em parceria com a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e a Rede de Mulheres Negras do Nordeste. "Desde agosto começamos a trabalhar com pré-candidatas, oferecendo oficinas de vídeo, materiais e ações que pudessem somar com a preparação eleitoral até a captação de recursos através de financiamentos virtuais. Queremos garantir candidaturas fortes e reais", explica Piedade Marques, integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e da campanha Eu Voto em Negra.
"A construção da política brasileira o que nós temos é uma composição que não reflete a maioria da população. Nós acreditamos na importância da construção desse espaço de representação porque é onde são definidas as políticas públicas, se não estivemos lá nossas necessidades não são consideradas. Estar nesse espaço é extremamente importante para garantir a vida, o bem estar, a vida, a saúde", completa. A atuação do Eu Voto em Negra tem posicionamento político definido e evidencia as candidaturas que está apoiando. "Nós atuamos na esquerda, mas sabemos que nos dois lados há uma dificuldade de participação das mulheres. Entre nós, definimos alguns critérios para fortalecer a relação com as apoiadas, queremos fortalecer campanhas que lutam pelos Direitos Humanos, são feministas e antirracistas", destaca Piedade, frisando o comprometimento das apoiadas com a idealização de políticas públicas centradas nas necessidades das mulheres. A líder deixa claro que a campanha incentiva todas candidaturas de mulheres negras e que não há disputando entre elas. "Para nós, não tem sentido falar da importância de votar em mulheres negras sem apontar nominalmente algumas candidatas. Nossa disputa não é interna, é lá fora, com todos os outros", conta.
Piedade lamenta, entretanto, que não há candidatas negras na corrida para os cargos majoritários. "Nesta eleição, o grande número de candidatas é para vereança e não dá pra achar que é por conta de algo menos perverso que o racismo estrutural, por mais avanço que tenhamos tido, o nosso crescimento ainda ficou na perspectiva dos proporcionais. Mesmo assim, considerando que os cargos do legislativo tenham a principal função fazer interlocução com a comunidade, nós achamos importante ocupar todos espaços de poder e as vereadoras têm um importante papel de fiscalizar a aplicação de recursos municipais", pontua.
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