Um dos principais motes do governo Bolsonaro é a aproximação do Brasil com os países mais relevantes do que considera o “Ocidente”. Esse direcionamento é fruto da influência da chamada ala ideológica do governo,que é liderada doutrinariamente por Olavo de Carvalho e comandada por figuras como Filipe Martins, assessor especial da Presidência, e o Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, ambos ex-alunos de Olavo. No Twitter do assessor e no blog do chanceler, o que eles entendem por ideais ocidentais fica um pouco mais claro.Contudo, é no resumo de um artigo do chanceler Araújo, intitulado “Trump e o Ocidente”, que encontramos a síntese dessa perspectiva ideológica:
Percebe-se, contudo, que o Ocidente (medieval) que o governo Bolsonaro deseja não é nem de perto o Ocidente que existe atualmente (há séculos). Democracia, secularismo e humanismo (onde enquadram-se os direitos humanos) são valores construídos e solidificados mundialmente por ninguém menos que as nações ocidentais. As bandeiras atuais que o Ocidente defende incluem, no campo ambiental, o desenvolvimento sustentável; no campo social, a igualdade de gênero e a proteção da comunidade LGBTQI+; no campo da saúde e da segurança públicas, o fim da guerra às drogas. E, apesar de observarmos claros retrocessos em todos esses campos, aproximando-nos de países orientais ultraconservadores e pitorescos, ainda há esperança de avançarmos em uma dessas pautas – a descriminalização do uso de drogas. Há duas possibilidades em curso de descriminalização do uso. A primeira é o Recurso Extraordinário nº 635.659, que tramita no Supremo Tribunal Federal, no qual se discute a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas. O art. 28 criminaliza o uso de drogas nos seguintes termos:
Iniciado em 2015, o RE 635.659 será votado por cada um dos 11 ministros do STF e já possui votos favoráveis (em diferentes medidas) de três ministros: Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Gilmar Mendes votou pela inconstitucionalidade completa do artigo, em prol da autonomia individual e reconhecendo as mazelas sociais causadas pela proibição. Fachinvotou no sentido de declarar a inconstitucionalidade exclusivamente da proibição do porte de maconha, com limites a serem fixados por instituições governamentais técnicas. Barroso, por sua vez, também votou pela inconstitucionalidade completa do art. 28, fixando provisoriamente (até que o Congresso decida permanentemente) um limite objetivo para o porte de maconha que diferencie usuário e traficante igualmente ao de Portugal: 25 gramas.
A segunda possibilidade é um anteprojeto de lei que tramita no Congresso Nacional para atualização da Lei de Drogas. Em 2018, a Câmara dos Deputados formou uma Comissão de Juristas para liderar o início dessa reformulação através do debate com especialistas, instituições e o público. No início de 2019, a Comissão entregou o anteprojeto com diversas propostas de alterações legislativas, sendo a principal delas a subdivisão dos artigos 28 (uso) e 33 (tráfico) em diversas subcategorias específicas, a fim de tratar condutas diferentes na medida de suas diferenças. Dentre tais mudanças,foi descriminalizado o uso de drogas nos seguintes termos:
“A aquisição, posse, armazenamento, guarda, transporte, compartilhamento ou uso de drogas ilícitas, para consumo pessoal, em quantidade de até 10 (dez) doses não constitui crime”.
Trata-se de um anteprojeto sofisticado e moderno que se propõe a encontrar um meio termo estratégico entre o conservadorismo do Congresso e a necessidade de mudança da política de drogas. De fato, quase todos os países do Ocidente não punem criminalmente usuários de drogas e possuem uma distinção objetiva entre usuário e traficante. Isso se dá por várias razões: (1) o uso problemático de drogas é uma questão de saúde, e não de criminalidade; (2) a atual política de drogas fracassou em todos os países onde foi implementada; (3) seu resultado foi o encarceramento em massa de populações marginalizadas, gerando alto custo social, humano e econômico; (4) a criminalização do uso fere a autonomia individual e a privacidade, direitos consagrados em nossa Constituição. Em 2015, o Ministro Gilmar Mendes apresentou em seu voto uma tabela sintetizando a situação legal dos países da América Latina e da Europa sobre a matéria:
Vale ainda lembrar que, de 2015 até hoje, Canadá e Estados Unidos se tornaram dois países líderes no avanço da descriminalização da maconha. O Canadá se tornou o segundo país do mundo, após o Uruguai, a legalizar inteiramente a maconha em 2018. Nos Estados Unidos, 11 estados já legalizaram o uso recreativo da maconha e outros 33 legalizaram o uso medicinal, ou seja, mais americanos têm acesso a maconha em alguma medida do que o contrário. O próprio presidente Trump já reiterou diversas vezes que deixará a cargo dos estados a definição da legalização da maconha – não há como nadar contra a maré nesse debate. Se o poder Executivo liderado por Bolsonaro nos aproxima cada vez mais do Ocidente medieval, resta aguardar se o posicionamento do Legislativo e do Judiciário será minimamente moderno. Neles, repousa a necessária e urgente descriminalização do uso de drogas. No meio termo, a manifestação da sociedade civil é mais importante do que nunca: caso se interesse pelo assunto, confira os materiais no site da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e, caso apoie a descriminalização, assine a petição online da campanha Descriminaliza STF.
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