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Brincar dentro de casa: narrativas de infâncias negadas e infâncias sonhadas

Atualizado: 6 de jun.

Por Ana Roberta Amorim


A história de Jozilene, mulher negra e mãe, revela como o racismo influencia na criação dos filhos ao mesmo tempo em que nos mostra como a nossa infância nunca nos abandona completamente


Ilustração: Luca Delmas


A família desta reportagem mora no início da rua Frei Jorge, localizada comunidade do Córrego do Sargento, zona norte do Recife, capital de Pernambuco. A casa se divide em duas partes, conectadas por escada de pedras e musgos escorregadia durante as chuvas. No início da escada, fica a sala de estar e com final da subida, um espaço aberto, onde aconteceu a entrevista. Ao lado, há um galpão, com materiais de consertos de roupas e sapatos, área onde o marido de Jozilene trabalha.


Jozilene Sobral, uma mulher negra, de baixa estatura vestida com uma blusa azul florida e um short preto, me recebeu no espaço aberto ao final da escada. Falante e sorridente, ela estava sempre rodeada pelos filhos. Moisés, o mais novo ainda na primeira infância, subia e descia do seu colo enquanto ela me contava sua história, que começou no Maranhão e recomeçou em Pernambuco, onde fugiu de um ex-marido abusivo.


O cenário que apresento aqui é o início de uma história onde o racismo, mais especificamente o racismo ambiental, se releva por dois aspectos principais: a falta de segurança pela exposição de uma mãe e de seus filhos diante das ameaças constantes do marido, pai e padrasto deles; e como essa situação que torna mais vulnerável a vida de uma mulher negra na busca pela paz tão citada durante a entrevista não traz o sossego em um ambiente que preserve de forma plena a sua existência no mundo.


Mas também é a partir do relato de Jozilene que consigo entender como se dá a sua relação com os seus filhos, da criação no dia a dia à brincadeira esporádica, quando ela consegue ter um contato maior com as crianças para além do que a rotina de trabalhadora doméstica,dona de casa e mãe solo permite.


Aos 39 anos e mãe de seis filhos, Jozilene valoriza  sua presença constante na vida dos pequenos, algo que ela mesma não teve. contou com a convivência de adultos responsáveis quando ainda não conseguia se defender sozinha.


"Eu fui adotada. Minha mãe me pegou com dois anos, mas era uma pessoa muito doente, tinha pneumonia, fumava muito. Desde os 10 anos, tava levando ela pro hospital. Não queria ficar só."


Anos depois, ela não estava sozinha. Bianca (12 anos), a mais velha das filhas que moram com Jozilene, tinha Vitoria (8), a atleta da família, praticante de Jiu Jitsu, nos braços; Davi (9) estava sempre ao redor; Moisés (4) se revezava entre o colo da mãe, o chão do espaço aberto e área do galpão, onde estavam os seus brinquedos.


Quando pergunto a ela sobre como essa (falta de) infância afetou a sua maneira de criar os seus filhos, ela me diz que algumas pessoas comentam que ela prende as crianças.


"Eu não crio os meus filhos presos. Mas foi o que eu tive."


Essa declaração me lembrou muito outra frase que ouvi da psicóloga Ana Amélia Prevatto, especialista entrevistada para esta reportagem, sobre a importância da presença do adulto no ato da brincadeira. “É importante a criança brincar sozinha, mas isso não quer dizer brincar abandonada”.


Jozilene não teve nem uma das duas opções. Nas palavras dela,


"Uma coisa que eu não tive foi infância."


A pedagoga, doutora em educação, com ênfase em Educação Infantil, com foco em estudos de relações étnico-raciais e antirracismo, Mighian Danae define o ato de brincar como uma “ação social organizada por crianças e adultos com o fim de promover a diversão, a brincadeira, a ludicidade, estimular a socialização”, diz. “O resultado do brincar está sempre relacionado a uma satisfação, um prazer e uma relação com o mundo, com as outras pessoas, os objetos e os eventos que não tenha uma obrigação com o resultado. Mas guarda o resultado na sua própria ação. Eu brinco porque, ao brincar, eu existo no mundo”, resume.


A casa ideal


Ilustração: Luca Delmas


O filho mais novo de Jozilene, Moisés, tem universos inteiros de brincadeiras no pequeno espaço do galpão onde o pai trabalha. Após a minha entrevista com Jozilene, eu encontro o menino abrindo um saco plástico e tirando cuidadosamente de dentro cada um dos seus bonecos e carrinhos para, então, começar a criar diferentes histórias e situações para cada um deles.


O galpão é um pouco maior do que a casa onde a família mora. No local, apenas uma mesa com alguns instrumentos, como uma máquina de costura, ocupa o ambiente.


Mas Moisés, de quatro anos, só precisa de um pequeno espaço no chão para montar suas narrativas. Ele me mostra o Hulk e o Homem de Pedra (O Coisa do filme “Quarteto Fantástico”) e os carros de diferentes personagens que se movimentam em manobras emocionantes porque o menino diz gostar de esportes radicais. Ele me conta sobre as relações de cada boneco, que vão de inimigos que se enfrentam diretamente a amigos improváveis por virem de histórias completamente diferentes, mas que para a criança faz todo o sentido, claro.


A psicóloga Ana Amélia comenta um pouco o fenômeno que são crianças se divertindo em seus próprios mundos. Para a especialista, “o nascimento é o ponto de partida para virarmos humanos e sujeitos”. A partir disso, “quando a criança não está brincando, ela está sempre no mundo e interagindo”.  


Isso significa, portanto, que a participação ativa dos adultos responsáveis pela criança é essencial nesse processo.


Mas e quando a pessoa adulta é uma mãe sobrecarregada, que trabalha fora para sustentar a família e dar possibilidades aos filhos que ela mesma não teve acesso quando tinha a idade deles?


Pergunto a Jozilene se ela tem tempo de brincar com as suas crianças. 


Ela dá um suspiro.


"Eu brinco com eles o máximo que eu posso. Eles têm os brinquedos deles, mas eles são mais de escrever e desenhar. Eu queria brincar mais com eles, mostrar minha presença. Porque eu sou mãe e pai."



Foto: Ana Roberta Amorim


Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2023 identificam o perfil da trabalhadora doméstica (ocupação exercida por 91,1% por mulheres), no Brasil, como sendo uma mulher negra, com em média 49 anos. Um perfil muito próximo ao de Jozilene – que, coincidentemente ou não, também é trabalhadora doméstica.  


Mas, para além do trabalho doméstico, seja com carteira assinada ou não, é preciso olhar com muita atenção para a atividade que envolve o acúmulo de tarefas, todas as pessoas da família (em especial, as mais vulneráveis, como crianças e idosos) e que, em tese, nunca tem um horário final de expediente: o trabalho de cuidado.


Essencialmente realizado por mulheres - em números traduzidos isso significa 75% de todas as pessoas do mundo inteiro (dados do Global Plataform for the Right to the City, 2023) - esse trabalho é invisibilizado socialmente ao mesmo tempo em que está em todos os momentos da rotina das famílias.


Na família de Jozilene, assim como na de inúmeras outras no Córrego do Sargento, no Recife, Pernambuco ou em outras tantas partes do Brasil, o racismo se mostra por diferentes ângulos e com variações de nomenclaturas que, no fim das contas, se referem a um único sistema de opressão.


E o racismo ambiental, portanto, não se mostra apenas na falta de acesso ao básico ou na negação de um ambiente digno de moradia, mas também no medo de uma mãe sobre o entorno onde a família vive e os filhos brincam.


Quando Jozilene me conta da preocupação constante que sente ao estar fora de casa, trabalhando para limpar e cuidar das casas de outras pessoas enquanto os seus filhos estão na escola ou com o marido dela no lar onde a família vive, ela fala também, mesmo sem saber, do peso que o trabalho do cuidado traz para a mulher, sobretudo para a mulher negra. Porque o cuidar não se refere ou não deveria se referir somente às tarefas de manutenção da vida com boa qualidade: alimentar, colocar para dormir, vestir a roupa etc. Mas a atenção constante ao bem-estar do outro.


A psicóloga Ana Amélia Prevatto afirma que “o adulto deve investir nas relações de cuidar” das crianças com o objetivo não somente de mantê-la viva e saudável, mas feliz – o que se relaciona diretamente com o estímulo e as condições para o brincar necessárias para o desenvolvimento da criança.


No entanto, esse direito não tem a ver somente com a disponibilidade de tempo e disposição da pessoa responsável pela criança, na maioria das vezes a mãe. A casa onde a família mora precisa de espaço que permita isso.


Como dito no início do texto, a casa de Jozilene se divide em duas partes, a residencial de fato e outra como um espaço para o trabalho. O espaço onde a família convive diariamente tem apenas dois quartos, onde em um dorme o casal e no outro os quatro filhos.


O advogado do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), Luís Emmanuel, explica que o sistema de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) quanto das Organização das Nações Unidas (ONU) pensam no direito à cidade interligado aos direitos à propriedade e à moradia. Ou seja, a presença e a luta por uma cidade digna e acessível para todas as populações passa também pelo entendimento de que esse direito começa no espaço de casa.


Ele também salienta que a luta pelo direito à cidade, ainda que tenha a regularização fundiária como porta de entrada do direito à moradia adequada, a discussão vai além e chega na estrutura arquitetônica da casa, que visa, sobretudo, o bem-estar das pessoas que ali moram. Ou seja, é “a construção arquitetonicamente adequada, acessível para quem precisa de acessibilidade; em termos de temperatura, que seja agradável”, frisa o advogado.


Quando pensamos nos momentos de brincadeira, alguns requisitos também são importantes. A pedagoga Mighian Danae comenta que “espaços pensados, organizados para realizar brincadeiras também as qualificam. Mas não significa que espaços que não tenham essa qualificação ou não sejam pensados para estimular brincadeiras não possam ser transformados em espaços de brincar”, pontua. Ela acrescenta que o local interfere na brincadeira, mas não impede que a criança aja sobre ele porque “a gente entende que as crianças vão brincar sempre, seja num espaço grande ou pequeno. O que a gente defende na educação é que esses espaços sejam intencionalmente pensados para promover a brincadeira - não necessariamente a aprendizagem”, frisa.


Essa explicação faz todo o sentido quando observo Moisés: não importa o lugar nem mesmo o que ele tem a disposição para realizar as suas brincadeiras, o que interessa é como ele interage e, mais ainda, como as pessoas ao redor interagem com ele e participam das histórias que ele cria com os brinquedos.


É por isso que, uma vez me vendo de cócoras para conversar com Moisés e tentar extrair algumas palavras, mesmo que pronunciadas pela metade e sem muitas conexões umas com as outras, natural da idade, ele me captura de tal forma que me vejo minutos infinitos ao seu lado entendendo e contribuindo com as narrativas que ele constrói a cada vez que retira um boneco da sacolinha cheia deles.


Este é o segundo capítulo da série de reportagens Racismo Ambiental e o direito de brincar das crianças periféricas do Recife, uma realização da Retruco com o Coletivo Sargento Perifa. Confira o episódio desta reportagem no Perifa Cast – podcast do Coletivo Sargento Perifa.



Esta reportagem integra o edital para a Bolsa de reportagem “O papel do jornalismo antirracista na proteção de crianças negras e periféricas, ação do Nós, mulheres da periferia, em parceria com Marco Zero Conteúdo e Alma Preta Jornalismo – apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal


 Um laboratório de jornalismo, criado por comunicadores do Nordeste, que se propõem a trazer o protagonismo as narrativas da região a partir de um ponto de vista questionador.

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