Por Eduarda Nunes
Na Primeira Infância, toda experiência conta e impacta o presente e o futuro das crianças. O racismo ambiental deixa muitos vestígios e o local onde a gente vive influencia significativamente no que a gente vai sendo enquanto cresce.
Ilustração: Luca Delmas
Até chegar a ser jornalista, fui muitas coisas. Dentre elas, fui uma criança que cresceu numa periferia horizontal na zona oeste do Recife. No bairro da mangueira, tive a oportunidade de brincar bastante, tanto dentro quanto fora de casa, mas mainha sempre regulou muito eu e meu irmão para não passarmos tanto tempo fora de casa - mesmo que fosse brincando com as outras crianças vizinhas. Como “a infância é um chão que a gente pisa a vida inteira” como a escritora Lya Luft escreveu, não poder ter acesso pleno ao ambiente externo de casa impacta a infância de toda criança periférica, mesmo que a razão por trás disso seja infelizmente plausível. Além do ambiente urbano ser desfavorável para as infâncias, no ambiente da periferia todo mundo é alvo - independente de idade, sexo e religião.
Ao contrário do que muita gente que conheceu o termo racismo ambiental recentemente, esse não é um problema que surge com as emergências climáticas e diz mais do que “somente” o meio ambiente natural. Cunhado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr, em 1980, no contexto do Movimento do Direitos Civis dos Negros nos Estados Unidos, essa expressão surgiu durante uma discussão sobre um projeto que pretendia transformar a cidade de Warren, com maioria negra, em depósito de resíduos tóxicos. Refere-se à maior vulnerabilidade social e ambiental de comunidades de etnias e populações marginalizadas.
O Córrego do Sargento
Carolina Andrade da Costa, Carol, tem 29 anos, é mãe de quatro filhos e mora no Córrego do Sargento, comunidade na zona norte do Recife (PE). Se viva, Elisabete Nunes, Bete, minha mãe, teria hoje 55 anos, sendo mãe de dois e cria da Mustardinha - também subúrbio, mas na zona oeste da cidade. Apesar de viverem em tempos e locais diferentes, ambas nutrem uma preocupação em comum: o receio de ter os filhos brincando na rua. Atualmente existe uma enorme preocupação com o uso excessivo de telas por crianças, sobretudo na Primeira Infância, que é o período que vai de zero a seis anos. No entanto, nas favelas e periferias, existe um medo anterior relacionado à segunda das crianças nas ruas.
Mães periféricas terem medo das suas crianças brincarem na rua é completamente compreensível, visto que gente pobre e preta não precisa de muito para se tornar alvo de violências ou mesmo ser achada por uma bala perdida. Nesse mesmo Recife, em 2016, no bairro do Ibura (zona sul), Mário Andrade, um jovem de 14 anos, esbarrou na moto de um policial militar e foi assassinado a tiros. Sua mãe, Joelma Andrade, conseguiu que o assassino fosse responsabilizado em 2018, mas a maior parte das mães pretas enlutadas não conseguem justiça para seus filhos.
Foto: Eduarda Nunes
“Era tão bom antigamente. Eu brincava tanto aí embaixo. Antigamente o canal era tudo aberto, a gente começava a pular de um lado pro outro, junto com as minhas irmãs que eu tinha, né? antigamente, que deus levou junto com a minha mãe. Era bom, hoje em dia que não tá prestando mais. Por isso que às vezes eu gosto de trancar eles dentro de casa. Às vezes os bicho tá tudo por aqui, metendo bala e eu vou atrás deles e aí fico doida atrás dele e ele ainda fica achando ruim que eu chamo ele na rua. Por isso que às vezes eu não deixo ele sair, eu deixo ele trancado. Porque eu to dentro de casa, ele na rua, o que acontecer com ele eu vou pra cadeia”
(Carolina Costa)
Esse papo de “na minha época era melhor” é muito interessante. Talvez nem fosse exatamente bom, mas há uma sensação nostálgica. O Córrego do Sargento que Carol viveu quando era criança, por exemplo, era um local ainda mais esquecido pelo poder público. A falta de saneamento adequado e o difícil acesso a serviços essenciais como saúde, educação e transporte são vivências de um racismo ambiental que é anterior às emergências climáticas. Sendo área de morro, em uma “chuvada” mais forte que aconteceu em 2010, Carol perdeu a mãe, o padrasto e três irmãs mais novas num deslizamento de barreira. Hoje mora com o companheiro e os dois filhos mais novos a menos de 1 km do local do deslizamento - que foi o segundo mais impactante no bairro. O primeiro data da década de 70.
O ambiente onde a gente cresce é crucial para nosso desenvolvimento. Seja pelas marcas positivas ou negativas. Em 2021, uma pesquisa do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI) destacou como o bairro influencia no desenvolvimento integral infantil, ou seja, no desenvolvimento físico, psicológico, intelectual, social, cognitivo e na autonomia. O documento trouxe importantes análises socioeconômicas e também contribuições para que as crianças possam ter suas infâncias preservadas e vividas longe das mais diversas formas de violência.
Quanto melhores as condições de moradias, mais saudável o desenvolvimento integral infantil das crianças. No entanto, em 2019, 13,6 milhões de pessoas viviam em favelas e periferias no Brasil, segundo o IBGE. Uma pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal revelou que a maioria das famílias com crianças de até 6 anos no Cadastro Único (CadÚnico) estão no nordeste - uma região que está sobre representada nesse quesito.
Entre essas famílias, 3 a cada 4 são chefiadas por mães solo, e 81% das crianças vivem em situação de pobreza. Sendo as cidades ambientes pouco propícios para as infâncias, as famílias que, na cidade, estão em situação de vulnerabilidade extrema, têm muito menos possibilidades de oferecer uma primeira infância com estímulos positivos para o desenvolvimento integral saudável de suas crianças.
Através do CadÚnico é possível entender o perfil das famílias de baixa renda no país e elaborar políticas públicas que viabilizem uma melhora econômica e social para elas através de programas como o Bolsa Família, a Prestação de Benefício Continuado (BPC) e outros. Esses benefícios possibilitam uma sobrevida pras famílias que tem direito e têm uma função importante na amortização do impacto do racismo ambiental e institucional que restringe direitos e negligencia o cuidado dessas pessoas. Não só delas, como do espaço onde elas vivem.
Nessas famílias, esses programas são parte essencial da renda, assim como é na família de Carol. Hoje ela vive com os dois filhos mais novos numa casa com o companheiro - que não é o pai das crianças. Esse foi assassinado e até hoje eles não sabem sequer o paradeiro do corpo dele.
Carol, David (10) e Isabele (13) fazem parte de um Brasil que tem seu acesso aos direitos mais básicos, fundamentais e humanos muito dificultados. Direito à saúde básica, à educação de qualidade, à alimentação plena e também o direito de ser criança e adolescente. Nessa série de reportagem o nosso foco é entender como o Direito de Brincar, assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é viabilizado para crianças negras e periféricas.
Muito antes dos perigos das telas, mães periféricas se preocupavam com a segurança dos filhos. Afinal, não é de hoje que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado nesse país. No Córrego do Sargento, o que deveria trazer a sensação de segurança, faz o contrário. Carol me contou como fica aflita quando a polícia chega ao território por cima, para cercar pelas escadarias com o intuito de intimidação do tráfico da área, e seus filhos estão na rua. E, embora o tráfico também seja uma questão na comunidade, a Polícia também tira a paz dos moradores do que os traficantes.
“Antigamente a gente brincava até tarde na rua, a gente podia tá conversando até tarde nas portas. [Hoje] A gente tá no portão aqui, os ‘homem’ desce [perguntam]:
-Tá fazendo o quê aí?
-Eu moro aqui.
-Entra.
Ás vezes a pessoa leva um tapa na cara de graça, sentada.”
(Carolina Costa)
Espaço ao ar livre pra brincar pelo Córrego do Sargento
“é como eu digo, antigamente era bom de brincar, hoje em dia não tem condição de estar na rua brincando” (Carolina Costa)
Foto: Naftali Sabino/Sargento Perifa
Brincar na rua, atualmente, parece até vintage. No geral, a cultura de brincar de pega-pegou, amarelinha, pular corda, jogar pião ou bola de gude na rua ficou bem esquecida. Na minha época, uma das brincadeiras mais desafiadoras era pular elástico, que nada mais era do que pouco mais de 1,20m de elástico que se coloca nas roupas, amarrado ponta a ponta e sendo segurado por duas pessoas enquanto outras iam pulando com o cuidado de não tocar nele. No nível um, cada uma segurava pelo tornozelo, no mais difícil, na ponta do dedo com os braços esticados pra cima. Hoje, chamar uma criança de 10 anos para essa brincadeira pode parecer antiquado.
Muito da cultura de brincar na rua que foi desestimulada se deve à sofisticação do racismo ambiental e institucional, que transformou o espaço público ao redor de nossas casas em um local perigoso ou, ao menos, desconfiado. No Córrego do Sargento, hoje, o que “sobrou” pras crianças é o espaço de uma praça que foi inaugurada recentemente, em 2023, que fica na entrada da comunidade. Morando longe ou perto, é lá que as crianças se encontram para brincar enquanto podem. Sendo interrompidas ou pelas mães chamando pra casa ou pela polícia que “visita” o Córrego semanalmente sem muita pretensão de respeitar a dignidade dos moradores da área.
“A gente tá brincando na rua, aí quando vê, do nada, uma correria”, conta isabele ao passo que sua mãe, Carol, reforça mais uma vez o risco deles levarem uma bala perdida. Eles, hoje, moram nas escadarias há mais de 100 degraus acima e uns 400 metros de onde fica a Praça do Córrego. Antes, eles brincavam numa barreira que hoje em dia dá ainda menos segurança para eles empinarem pipa e ficarem inventando brincadeira por lá.
Muito antes dessa barreira em questão, as crianças tinham por perto também uma quadra em um campo de várzea próximo dessa praça. E mesmo sem ter a melhor estrutura para um ambiente de prática de esportes, a quadra acolhia as crianças do Córrego do Sargento e outras periferias próximas nas décadas de 70 a 90. Crianças de todas as idades, que viviam a Primeira Infância ali também. Agora, o ambiente não é mais o mesmo e vive numa obra que os moradores nem sabem ao certo o que será, mas sabe-se que, pelo menos agora, o local é mais um ponto de uso e comercialização de drogas do que um espaço de lazer. A falta de espaços seguros para brincar é um problema sério nas periferias do Recife.
Ilustração: Luca Delmas
O artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente define o “brincar, praticar esportes e se divertir” enquanto um dos aspectos do direito à liberdade. Pedagoga e pesquisadora da Sociologia da Infância, Míghian Danae afirma que é no brincar que uma criança se compreende em casa, na família, no ambiente onde está inserida. E é uma atividade que não precisa ter muita pretensão: o principal objetivo é o entretenimento e, além disso, o direito de brincar é uma das garantias do Marco Legal da Primeira Infância aprovado em 2016.
A pesquisa do NCPI sobre o bairro e o desenvolvimento integral das crianças cita que as grandes cidades, no geral, são ambientes que são menos favoráveis para a primeira infância e que nas favelas as crianças contam com adversidades negativas a mais como a dificuldade no acesso ao saneamento e a água potável. Mesmo Recife tendo um Marco Legal de Primeira Infância próprio aprovado desde 2018 e um Plano Decenal de Políticas para a Primeira Infância aprovado desde 2020, as crianças de 0 a 6 anos que vivem no Córrego do Sargento não têm tido acesso a uma primeira infância mais bem cuidada.
A cidade hoje conta com quatro Praças da Primeira Infância, que é um espaço dedicado e desenvolvido para receber crianças nessa faixa de idade, mas a que fica mais próxima do Córrego está a cerca de 4 km, no bairro da Encruzilhada. A construção desses equipamentos é mais recente que as dos demais parques que existem na cidade.
No geral, os morros e altos não são os locais onde as gestões municipais e estaduais direcionam parques, espaços verdes e de convivência. Nesse contexto, o que mais aproxima as mães e crianças do Córrego para o Parque da Jaqueira, por exemplo, é o micro-ônibus que faz o transporte complementar do sistema público de transporte e que possibilita esse traslado. Pela distância e custo, esse se torna um passeio esporádico e as crianças têm que se bastar com o parque do bairro que não tem tantos equipamentos, a barreira ou qualquer outra alternativa que elas irão criar. Como se o direito delas de brincar não fosse digno de ser viabilizado enquanto política pública.
Racismo ambiental e os movimentos de Direito À Cidade
Embora seja um termo que mais recentemente tenha voltado a ser popularizado, Racismo Ambiental é um tema que é abordado cotidianamente por quem trabalha pelo amplo Direito à Cidade. Aqui no Brasil somos alertados recorrentemente pelos povos indígenas sobre os riscos e as violências que as comunidades indígenas sofrem todos os dias pelo avanço do Agronegócio e da Mineração ilegal e negligência do Estado. O Movimento Negro também nos alerta o tempo todo sobre a vulnerabilidade de quem vive nas favelas e em outras áreas periféricas longe das capitais - sobretudo em relação às forças de segurança pública.
No Recife, uma organização que trabalha há mais de 30 anos nesse tema é o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec). Luís Emannuel é o coordenador do programa de Direito à Cidade da ONG e entende que a luta por terra e moradia é o primeiro passo em relação a outros acessos que nos dão pleno usufruto do espaço onde a gente vive.
O Racismo Ambiental, além de dificultar o acesso a serviços públicos básicos e essenciais, como o saneamento básico, creche e posto de saúde, também impõe a quem mora nas favelas uma aproximação ainda maior com os desequilíbrios ambientais. “as casas de periferia não vivem só no risco de inundação durante o inverno, mas também agora no verão vive nos riscos das altas temperaturas e principalmente quem passa por isso são as mulheres, que são aquelas a quem a gente relega o trabalho doméstico. Não só cuidando da casa, mas ali cuidando das crianças. Então, tanto mulheres como as crianças são quem mais enfrentam as altas temperaturas no verão”, afirma Luís.
O advogado faz uma comparação entre o local onde o Cendhec é sediado, no bairro da Madalena, na zona norte nobre do Recife, e o bairro de Nova Descoberta, onde eles realizam Assessoria Técnica para Habitação de Interesse Social. Lá também é zona norte, mas é na parte periférica da cidade e são quase seis graus de diferença.
“Hoje a gente consegue identificar dentro da cidade essa segregação muito claramente. Você tem um sol que recai sobre uma cidade cujas consequências e efeitos são muito mais sérias e degradantes para uma parte da cidade que dificilmente tem acesso às políticas públicas, são casas construídas às revelias do acompanhamento das autoridades. as autoridades não chegam lá para regularizar, trazer acesso à água potável, nada. Essas comunidades só tem acesso ao estado através da polícia e do sistema prisional. Da Defesa Civil quando tem um desastre. é o que o pessoal chama de inclusão na exclusão” Luís Emanuel
Luís ressalta que o acesso à terra e moradia é a base para reivindicar outros direitos. A experiência no Cendhec mostra que enquanto os mais velhos lutavam pelo acesso à terra, os jovens enfrentam privação de direitos dentro e fora dos territórios onde vivem. Além dos problemas de transporte público no Recife e Região Metropolitana, o endereço em um currículo pode interferir na busca por empregos melhores.
De todo modo, é preciso relembrar sempre que o acesso à cidadania não é não pode ser por meritocracia. O racismo institucional e ambiental mina a humanidade das pessoas que vivem nas periferias e acaba criando um ranking de quem merece ter seus direitos respeitados ou não. E “quando a gente fala de sujeito de direitos, a gente fala de dignidade humana enquanto um princípio do Direito e não como um simples merecimento. É enquanto uma efetivação de direitos fundamentais. A gente percebe muito essa dificuldade das pessoas se perceberem enquanto cidadãos e cidadãs”, afirma o advogado Luís Emmanuel.
E essa é uma problemática que não começa hoje, mas lá na Lei de Terras de 1950 que, literalmente, impediu pessoas negras, sendo ex-escravizadas ou não, que pudessem ter seus cantinhos e produções. Relegando todos eles à venda da sua força de trabalho, tempo, saúde e afetividade.
Este é o terceiro e último capítulo da série de reportagens Racismo Ambiental e o direito de brincar das crianças periféricas do Recife, uma realização da Retruco com o Coletivo Sargento Perifa. Confira também o episódio desta reportagem no Perifa Cast - podcast do Coletivo Sargento Perifa.
Esta reportagem integra o edital para a Bolsa de reportagem “O papel do jornalismo antirracista na proteção de crianças negras e periféricas, ação do Nós, mulheres da periferia, em parceria com Marco Zero Conteúdo e Alma Preta Jornalismo - apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
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