Coluna assinada por Jefferson Sousa O último filme que escrevi e dirigi, "Leonardo Bastião, o poeta analfabeto", circulou alguns festivais de cinema pelo mundo. Entre eles, estive junto com a exibição competitiva em Sarajevo, capital da Bósnia & Herzegovina, no Viva Film Festival 2019, onde passei oito dias de uma imprevisível e pura imersão político-social na história de uma Terras dos Bálcãs que, diferente de um Brasil apegado à torturadores, usa, através da cultura e da memória coletiva, o seu passado sangrento para erguer um presente e futuro de paz.
Dois dias antes da minha volta, em uma festa de confraternização após o término do festival, fiz amizade com um dos últimos competidores que eu ainda não tinha me enturmado. Depois de boas risadas e abraçados coordenados pelo alto teor alcoólico das nossas bebidas, em um péssimo ambiente sonoro de um karaokê mal cantado, perguntei de onde ele era. Ele encheu o peito e disse que era da Sérvia. Eu abri um sorriso, pois eu já tinha conhecido outro competidor da Sérvia, e perguntei "igual 'fulano', né?". Neste momento ele fechou a cara, tirou o amigável braço suado de cima do meu ombro e disse, "'Sebilj', não, ele é da Sérvia da Bósnia, eu sou da Sérvia da Sérvia", e saiu amuado.
O que este meu primeiro intrigado internacional possivelmente teria me dito se não estivesse embriagado seria "'Sebilj', é um assunto longo e complicado". Como eu ainda teria dois dias de pura desocupação por aquelas terras, decidi retraçar e refletir estas complicações geopolíticas nos ambientes que passei desatento nos seis dias anteriores e entender o que danado era Sebilj. Não fiz nada de extraordinário, fui apenas para ambientes clichês de qualquer centro de uma capital, como sorveterias, restaurantes, lojas de roupas e igrejas, mas foi justamente a naturalidade do extraordinário que me surpreendeu.
Sentei em uma sorveteria. No teto, várias imagens de crianças bósnias esquartejadas durante a última guerra. No chão, várias crianças bósnias brincando sorridentes com as mãos meladas da calda de chocolate derretida de seus sorvetes. Este fenômeno se repetiu em outros ambientes, como praças públicas e até no campo de futebol. O fato de que ninguém estava surpreso ou incomodado com aquelas atrocidades visuais só não me causou mais incômodo do que quando descobri que, por Sarajevo só ter em torno de 410 mil habitantes e aquela violência ter sido há menos de 25 anos, possivelmente alguns daqueles menininhos sem vida poderiam facilmente ser um parente de quem costuma consumir ou trabalhar naquele local.
1992-1995
Quando falamos em guerras sanguinárias, lembramos da II Mundial ou de alguma mais antiga. As imagens de documentários e livros, ou até mesmo ficções cinematográficas, criam e recriam o imaginário de quem nunca esteve em um centro de conflito internacional. Para brasileiros que a viveram, por exemplo, a lembrança da ditadura militar pós Ato Institucional nº 5, decretado 13 de dezembro de 1968, onde perseguiu e torturou diversos cidadãos, pode causar um sentimento de memória coletiva de dor do que uma guerra internacional propriamente dita.
De 6 de abril de 1992 a 14 de dezembro de 1995, a Guerra da Bósnia matou centenas de milhares de pessoas durante a separação da antiga Iugoslávia - o que seria uma grande porcentagem da população, visto que a região não é tão populosa. Mas antes de engolirmos os números misturados com as reviravoltas da história, vale observar com calma quais violências foram e como foram cometidas.
O conflito envolveu os três principais grupos étnicos que existiam na região: croatas, sérvios e bósnios. Houve um processo de limpeza étnica promovido pelas forças sérvio-bósnias contra a população bosníaca (bósnio-muçulmanos), onde incluíram, entre diversas atrocidades, o esquartejamento de crianças e estupros contra muçulmanas e muçulmanos pela justificativa de "não serem gente de bem". Uma pesquisa da University of Sarajevo estipula que cerca de 45 mil mulheres foram vítimas de algum tipo de violência sexual - pouco mais de 15% da população feminina do país na época.
Para compreender a sua densidade e aproximação que proponho com o desenvolvimento social do Brasil dos dias de hoje, é preciso seguir o questionamento básico: como um território chegou a tamanha barbárie contra o seu próprio povo em tão pouco tempo e há tão pouco tempo? Svetlana, muçulmana de 58 anos, atendente do Museum Of Crimes Against Humanity And Genocide, em Sarajevo, me disse, num inglês pior do que o meu, "a desinformação que trouxe as armas, mas quem deu as munições foram os maus intencionados."
O peso das nomenclaturas
"Nacionalismo" foi o termo mais utilizado dentre os discursos de justificação do ódio que culminaram na matança de minorias sociais e de pessoas de posicionamentos políticos contrários aos dos que estavam no poder. Ainda no início das ofensivas externas, a Biblioteca Nacional da Bósnia-Herzegovina sofreu o primeiro de muitos ataques na noite de 25 de agosto de 1992, por ordem de um general sérvio que defendia que ali era um "campo de ideologias contra o bem". Entre os milhões de volumes que ficaram sob os escombros do edifício inaugurado em 1896, estavam 150 mil obras raras e exatos 478 manuscritos. O local só foi reinaugurado em 2014.
Assim como a maior biblioteca da região, museus, centros artísticos e outras construções que representam a educação ou a cultura foram os primeiros a serem queimados. Šaban Bajramović, Lepa Brena. D. e Goran Bregovic foram nomes entre tantos músicos que usaram da arte para manifestar o afogamento social da época e saíram como "odiadores da nação". Quanto mais eu entendia sobre os motivos da eclosão daqueles conflitos, mais a irresistível tristeza da reflexão me fazia enxergar ali um Brasil atual.
O tempo é cíclico
Comparo com o atual e não com o de 1964-1980 porque o país Balcã, diferente do nosso, aprendeu com a sua história. Radovan Karadžić (ex-político sérvio acusado de crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional da ex-Iugoslávia, detido em 21 de Julho de 2008) e Momčilo Krajišnik (nascido em Sarajevo, um dos fundadores do Partido Nacionalista Sérvio-Bósnio, o Partido Democrático Sérvio) foram condenados a prisão perpétua e, acredite ou não, os seus nomes são utilizados como insultos pelos moradores da região.
Talvez um leitor apegado ao ex-coronel do Exército Brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos atuantes na repressão política, reconhecido pela Tribunal de Justiça de São Paulo como um torturador, não consiga notar a importância de nominar, condenar e expôr estes vilões da história de um país, detalhando pausadamente os seus crimes, mas este foi o caminho encontrado pela conjuntura de países formados pelo pós-guerra para evitar repetições na sua história.
Há, sabe o Sebilj? Ele é um monumento símbolo da união pela paz, foi durante décadas - e é até hoje - um chafariz de água potável gratuita, localizado na praça central de Sarajevo. De frente a sua construção, há uma sinagoga na esquerda, uma mesquita no centro e uma catedral católica na direita, dividindo muro uma com as outras. O Sebilj é tema de muitas canções e poemas da B&H por sua representatividade de união e desde 1995 vem sendo utilizado "gritalmente" quando qualquer político ou personalidade pública faz um discurso minimamente autoritário.
Por lá, não se resume uma figura ou discurso com uma nomenclatura exclusiva de "direita" ou "esquerda", apenas gritam "Sebilj" quando é preciso ser gritado. Independente de quem está fazendo a história atual, é comum à população que "não se pode faltar água potável para todos do nosso real país". Não há nada mais nacional do que pensar no próximo.
P.S.: Eu e o meu colega de quarto na Bósnia vencemos prêmios neste festival. Achei bonito que colocaram "Sebilj, Brazil" ao final do texto do meu prêmio, porém, percebi que não havia a mesma menção na mensagem do prêmio do meu roommate mexicano.
Sebilj, Brasil!
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