Por Juliana Aguiar
Duas caixas e mais alguns pedaços de papelão. O material apurado pela catadora de produto reciclável Rozineide Moreira, de 57 anos, nessa segunda-feira, dia 15 de fevereiro, sintetiza o cancelamento de um ciclo ininterrupto. A ausência dos clarins e o cinza das ruas no dia que deveria ser festa e euforia em meio desfile de blocos carnavalescos, deu espaço para o vazio de latinhas de alumínio, produtos que impulsionam o trabalho de centenas de catadores todos os anos nas ladeiras do Sítio Histórico de Olinda e no Centro do Recife. Durante os quatro dias de festa, a categoria que minimiza os danos causados pelo uso desenfreado dos materiais, realiza uma sequência de viagens carregando sacolas lotadas de materiais desde o foco da folia até os pontos de coleta, e faz do descarte uma forma de lucro, fomentando o sustento de várias famílias. A atividade se desenvolveu como um produto do trabalho dos artistas e dos ambulantes em meio à folia, uma ação silenciosa e fundamental que neste ano sofre com as dificuldades impostas pela não realização do ciclo carnavalesco, momento de maior ganho para a categoria. Agora, sobrevivem do que arrecadam com os poucos quilos de material que conseguem catar e doações de cestas básicas.
"Tá uma situação muito difícil, já tava difícil com a pandemia, e agora no Carnaval tá ainda pior. A rua tá um vazio só, sem comércio, sem bloco, sem vida, sem graça", revela Rozineide, também conhecida como Rosa. Ela cruzou os bairros do Espinheiro, Arruda e Beberibe, na Zona Norte do Recife, das 8h às 17h30 nessa segunda, realizando a coleta e voltou para casa praticamente de mãos vazias. "Se hoje fosse Carnaval, eu pegaria três ou quatro vezes mais do que a quantidade que peguei hoje. E seria de alumínio, que me dá muito mais dinheiro", explica Rosa, que, ao lado do marido, sustenta a casa, um filho e dois netos, através da atividade. "Eu trabalho na rua, recolho os materiais, levo pro depósito que fica na minha casa e meu marido separa para reciclar. A família toda tem a mesma fonte de renda, às vezes não temos dinheiro para nada", confessa. "Esse lixo que me dá o que comer, que segura a minha família. Eu me viro com o que eu posso e com o que eu tenho".
No ano passado, ao longo do Carnaval de Olinda foram coletadas 120 toneladas de reciclados, são 70 toneladas a mais que no mesmo período em 2019. Ao todo, foram 800 pessoas para fazer trabalho de catação. "Foi um recorde de coleta, tanto de material quanto de pessoas trabalhando, tivemos muitos profissionais já cadastrados em cooperativas e pessoas interessadas em desenvolver essa atividade exclusivamente no Carnaval", conta o ativista Felipe Meirelles, fundador do Instituto Meu Mundo Mais Verde e embaixador do Pimp My Carroça em Olinda, que acompanha catadores e desenvolve projetos e políticas de alavancagens no estado. De acordo com Meirelles, durante os dias de festa de Carnaval, os catadores conseguem reunir em média R$ 1,5 mil, um valor superior ao apurado por eles em qualquer mês do ano. "Esse ano prometia ser ainda melhor, o valor de venda do alumínio tá por volta de R$ 6. A gente conseguiria fazer a venda com um valor superior, mas diante da situação, que é inevitável, estamos tentando pelo menos mover um auxílio emergencial para a categoria", argumenta
DIFICULDADES
Para o ativista, a maior dificuldade enfrentada pelos catadores neste momento é que as gestões municipais não conhecem a realidade da categoria. "Estamos dialogando com gestores de Olinda para auxílio emergencial, mas a Câmara Municipal ainda precisa aprovar. Temos uma dificuldade enorme de diálogo com essas instituições e por isso procuramos movimentar outras fontes e mobilizar iniciativas privadas", conta. De acordo com Felipe, é preciso atingir a visibilidade do poder público para além do ciclo festivo. "Não existe o apoio, falando especificamente em Olinda. O poder municipal não apoia, não dá condições, mantém a cidade suja, não capacita. Não tem sensibilidade, urgência e apoio na pauta", ressalta. Atualmente, além de gerenciar o ponto de coleta, o Mundo Mais Verde organiza uma coleta seletiva em cerca de 20 ruas do Sítio Histórico de forma perene.
A Prefeitura de Olinda explicou, em nota, que incluiu os catadores de recicláveis entre os beneficiados em novo projeto de lei de Auxílio Emergencial, que foi encaminhado à Câmara Municipal. O projeto foi entregue na semana passada ao presidente da Câmara de Vereadores de Olinda, Saulo Holanda (Solidariedade). A votação está prevista para esta quinta (18), às 10h. Se for aprovado, o pagamento deve começar em março, estendendo-se até maio. Serão utilizados os cadastros de cooperativas que já trabalham na cidade no período do Carnaval. O valor será de R$ 250 e a forma como será repassado aos cooperados ainda está sendo estudada.
Já a Prefeitura do Recife anunciou um apoio para os trabalhadores informais cadastrados no ciclo festivo de 2020. Ao todo, 2.800 pessoas, de 690 famílias de catadores de recicláveis, artesãos, comerciantes informais e guardadores de carros serão beneficiadas com duas cestas básicas cada. As cestas foram viabilizadas por doação da Associação Pernambucana de Supermercados (Apes) e Pitú, por meio da plataforma Transforma Recife. As cestas básicas serão distribuídas aos trabalhadores em dois momentos e a primeira entrega será feita a partir desta quinta-feira (18). De acordo com a prefeitura, os trabalhadores serão comunicados previamente, por meio de contato telefônico, para combinar horário e local definidos pelas equipes da PCR. Após 15 dias do recebimento da primeira cesta, as equipes começam a entrar em contato com os trabalhadores novamente para realizar a entrega da segunda cesta.
COLETA MENSURÁVEL
A primeira coleta mensurável durante o período de Carnaval foi realizada em 2019, encabeçada pelo Meu Mundo Mais Verde e Pimp My Carroça, apurou 53 toneladas de resíduos. Cada catador faz em média sete viagens, das 7h às 19h, até atingir o limite físico. Coletam, deixam no ponto e voltam para pegar mais material. As latas são vendidas em torno de R$ 4,50 /kg, os resíduos plásticos oscilam entre R$ 2 e R$ 2,50/kg, enquanto o papelão custa cerca de R$ 1/kg. "A cada dia eles já saem com o valor apurado. Voltam para casa ou dormem no ponto de coleta", conta. Para viabilizar o projeto, é feito um acordo de pré-venda com Novelis, empresa líder em reciclagem de alumínio na América Latina, com sede em Porta Larga, Zona Oeste do Recife. O processo de inscrição dos catadores é simples. Para se cadastrar, é preciso se dirigir até o ponto de coleta, nas Três Marias, próximo a Praça do Carmo, onde é realizado um café da manhã e a distribuição das camisas de identificação. O ativista explica que a dinâmica é diferente no Recife. "Lá eles colocam a cooperativa para trabalhar nos pontos. O resíduo ficava para a cooperativa, que vendia o material, e dava a cada trabalhador um valor diário de R$ 80.
PARA ALÉM DO CARNAVAL
Com a pandemia, os recicláveis estão mais escassos, e apesar da alta do alumínio, o faturamento não aumentou. O período impactou para além do ciclo festivo, desabrigando famílias e deixando trabalhadores sem assistência. De acordo com Rozineide, a situação tem sido difícil desde o período de isolamento social. "Eu tou pela misericórdia. Tá muito difícil depender da Prefeitura… Eles não valorizam o trabalho que nós fazemos, somos desconhecidos. Já me prometeram até um depósito, mas não me deram, tive que tirar do meu bolso e, com muita dificuldade, eu fiz. Se reconhecesse o sacrifício da gente, viveríamos melhor", conta. Ela vai às ruas recolher recicláveis há mais de 20 anos "Tou me virando, seguindo em frente… Perdi minha mãe e meu pai muito cedo, trabalhei na casa dos outros, sendo humilhada, até encontrar a reciclagem. Eu amo o que eu faço, trabalho com gosto e porque eu preciso, mas faço com amor. É um dom", revela.Rosa recebeu o apoio do Pimp My Carroça e realiza as coletas com uma Kombi, acompanhada de motorista e um auxiliar.
A trabalhadora autônoma Márcia Barbosa, de 46 anos, relata dificuldade no período."Ficou complicado com essa pandemia, eu trabalho para mim mesma. No Carnaval é a época que a gente apura muitas latinhas. Agora eu pego de tudo, livro, jornal, cadeira.. de tudo", conta. Para ela, é mais vantajoso coletar lata e cobre, que são os materiais mais lucrativos para a comercialização. "Eu cato na rua, até encher a carroça e volto pra casa. Também pego na casa das pessoas que se reúnem pra mim. Pego, meu marido separa e levamos separado para vender em um depósito em Jardim Atlântico, em Olinda", detalha. A história de Márcia com a reciclagem começou há 9 anos através do marido. "Ele começou, eu fui vendo e decidi fazer também, aos pouquinhos. Sempre saio com a minha carroça, é a reciclagem que sustenta a família. Moro com meus dois filhos e meu marido", afirma. Márcia foi uma dos 169 catadores atendidos pelas ações do Pimp My Carroça, que já realizou duas edições em Pernambuco. São 171 voluntários + 89 que se inscreveram pelo site. Os eventos do Pimp são colaborativos e reúnem catadores e voluntários de todos os tipos: funileiros reformam a carroça e artistas pintam o veículo enquanto médicos, cabeleireiros e outros profissionais atendem os catadores e seus familiares. Durante essas ações são entregues kits com diversos itens de segurança, como calças e coletes com faixas refletivas, retrovisor, buzina, luvas emborrachadas, uma lâmpada solar, fitas refletivas, entre outros. O Pimp também desenvolve ações perenes, através do aplicativo Cataki que tem, atualmente, 94 catadores cadastrados em Pernambuco, sendo 35 no Recife.
ATRAVESSADOR
"Eu sempre trabalhei no Carnaval, colhia 2 mil kg de material por dia, agora sem Carnaval, os catadores estão na rua, achando o que podem, eles estão se defendendo como podem", lamenta o comerciante Sebastião Pereira Duque, de 65 anos. Diante da pandemia, ele encontrou uma oportunidade de se reinventar. "Hoje em dia não estou mais coletando na rua, agora eu compro de quem coleta. Eu não tenho do que reclamar. Pra mim tá bom demais até...", revela. Já consolidado no ramo, Sebastião se tornou atravessador, servindo como ponto de coleta de material reciclado e fazendo a ponte direta com as lojas interessadas. "Vários depósitos fecharam dentro da minha comunidade, o desemprego cresceu, então eu comprando consigo ajudar muitas pessoas. E minha renda aumentou mais de 50%", explica.
Sebastião atua na reciclagem desde o início dos anos 1990. Na época, dormia dentro do lixão Paulista e andava por uma infinidade de ruas em busca de material reciclável para manter o sustento. Fez das latas, plásticos, fios de cobre e placas de ferro o seu sustento, se tornou atravessador há pouco mais de um ano e mantém uma escola voltada à educação de crianças até os cinco anos, a Nova Esperança, em Rio Doce, onde fica o seu depósito. "De vez em quando, de manhãzinha cedo antes do sol esquentar, dou uma voltinha e coleto algum material, é uma relação afetiva. Eu acho a reciclagem importante porque primeiramente me deu a minha profissão, e dá pra eu sobreviver muito bem. Além de que tudo pode ser aproveitado. Hoje em dia não existe lixo. Tá ajudando o planeta e ganhando o pão de cada dia", conclui.
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