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Como o caso Miguel resume a revolta dos brasileiros com a justiça – e possíveis saídas



Arte: Gabriella Borges

A morte do menino Miguel que estava aos cuidados da empregadora da mãe, chocou o país no início deste mês. O crime causa revolta por várias razões: pela desigualdade racial e socioeconômica que expõe, pela brutalidade da tragédia contra uma criança tão nova, pelo patrimonialismo da família que envolve o alto escalão da política local e esquemas de corrupção às custas dos mais pobres, e pela soma de tudo isso que se materializa na lembrança de um passado escravocrata que, pelo jeito, nunca nos deixou. Nesta coluna, vou focar em um dos aspectos do caso que chamou mais a atenção, a desigualdade do sistema de justiça brasileiro, e discutir possíveis saídas jurídicas para o caso.


Diante da tragédia, todos os brasileiros sentiram que alguma coisa estava muito errada. Como é possível que, tão rapidamente, a suspeita de um caso brutal fosse solta por pagar 20 mil reais? A intuição de que algo errado com o sistema de justiça brasileiro foi refletido nesse caso não é equivocada. Entretanto, essa intuição também não está totalmente certa.  


O sentimento de injustiça acerta quando identifica que o sistema de justiça criminal trata de formas diferentes réus de origens socioeconômicas e raciais distintas. Em linhas gerais, para os excepcionais réus afortunados, a medida da justiça é o respeito às garantias processuais. O princípio in dubio pro reo (em dúvida, a favor do réu) vigora adequadamente, como deveria em todos os casos. A ré no caso Miguel foi enquadrada no delito de homicídio culposo, tipificação mais branda possível das que vêm primeiramente à memória dos juristas. Inclusive, o delito chega a autorizar a concessão de fiança e possui pena de, mais ou menos, 2 a 13 anos (combinando o art. 121 com o art. 14, ambos do Código Penal). Entretanto, o Código Penal prevê um delito muito mais específico (e provavelmente adequado) em seu art. 133, parágrafo 2º: abandono de incapaz que resulta em morte. Nesse caso, a pena varia de 4 a 12 anos. A diferença não parece grande, mas a pena mínima sair de 2 para 4 anos é suficiente para fazer com que a ré não tenha direito a quase todos os benefícios processuais penais. 


Esse enquadramento como abandono de incapaz qualificado, por exemplo, cumpriria um dos requisitos da prisão preventiva (art. 313, I, do Código Processual Penal). Uma das justificativas mais utilizadas por juízes ao redor do país para prender preventivamente pessoas acusadas de tráfico de drogas, a garantia da ordem pública, encontraria respaldo como dificilmente encontra: manifestações estavam organizadas para acontecerem em frente ao prédio, ocasionando insegurança entre os moradores e requerendo a mobilização de efetivo policial para prevenir o descontrole do ato, tudo em meio a protestos antirracistas globais e a uma pandemia que colocou todos os presentes em risco de vida. Além disso, poderia se pensar inclusive na prisão preventiva como forma de garantia da aplicação da lei penal, considerando a possibilidade de fuga da ré. Contudo, a prisão preventiva não foi decretada: ainda bem. Não houve ruptura da ordem pública ou fuga da ré e a importância da cautela na aplicação da lei penal foi reafirmada.


Por outro lado, infelizmente, não é essa cautela que se vê na aplicação da lei entre os milhares de homens e mulheres menos afortunados – e é por isso que o sentimento de injustiça da população acerta. Nesse caso, o parâmetro de qualidade da justiça é a eficiência na “incapacitação” de potenciais criminosos, e não o respeito às garantias processuais. Focando na relação entre mulheres e justiça criminal, quase 2 em cada 3 mulheres presas está na cadeia por tráfico de drogas (imagem 1). Isso significa que, das 45 mil mulheres presas, mais de 27 mil são acusadas ou condenadas por tráfico. 



Os dados mostram que 62% das mulheres estão presas por tráfico, a maioria delas por portar quantidade ínfima

O mais trágico desse dado é saber que, dessas milhares de mulheres, a maioria não deveria estar na prisão. Levantamentos realizados em presídios ao redor do país, como em São Paulo e no Ceará, mostram que a maioria das presas por tráfico responde por quantidades ínfimas de entorpecentes que geralmente resultam em penas tão pequenas que sequer autorizam o regime fechado. Os dados detalhados do levantamento cearense são chocantes:


“A pesquisa revelou que, no momento da prisão, 22% das mulheres estavam portando até 10 gramas de entorpecentes; 35% portavam a quantidade entre 11 e 100 gramas; 20% portavam entre 101g até 1kg. Apenas 15% foram apreendidas com até 10 quilos de drogas e 6% das mulheres estavam com acima de 10 quilos de drogas no momento da prisão. “É um número bastante alto por uma apreensão insignificante. Se você considerar até 100 gramas, esse número sobe para 58%, ou seja, mais da metade das mulheres estão presas por uma quantidade que é rotulada como tráfico de drogas, o que, na verdade, pode significar um usuário ou, no máximo, pequeno traficante”, destaca a defensora pública responsável pela pesquisa, Gina Moura, que também é responsável pelos atendimentos na unidade.”


Esses dados ilustram a rotina do que é eficiência para o sistema de justiça criminal brasileiro quando lida com milhares de mulheres e homens negros. A revolta gerada pelo caso Miguel se relaciona intimamente com essa seletividade na justiça, uma vez que o sentimento do que é justo possui duas dimensões: o que é certo e o que é isonômico. O que é certo é a aplicação da lei de forma proporcional ao crime do réu, com todas as garantias e dispositivos previstos. O que é isonômico é que esse tratamento certo seja dado a todos. Aplicar as garantias penais a poucos é melhor do que a ninguém, mas sem dúvidas não é suficiente para que haja justiça. É por evidenciar a ausência de isonomia, ilustrando a desigualdade racial e econômica do país, que o caso Miguel resume a revolta da população, levando-a a equivocadamente buscar punição como resposta para o ferimento dessa dimensão na justiça. 


O nivelamento pela punição mais brutal é tentador como forma de compensação pela desigualdade que rodeia o contexto da tragédia. À dor do luto soma-se o desamparo da família que perde os empregos que tinham há anos e, a curto prazo, passam a depender do suporte financeiro do governo e de terceiros. Enquanto isso, as consequências que a autora do crime vai sofrer se restringem ao que o sistema de justiça impuser. 


Entretanto, o buraco é mais embaixo e não é a aplicação da mesma lógica brutal, traduzida numa pena de prisão longa, que solucionará problemas estruturais. É preciso que a pena vá além da mera brutalidade e sirva simbólica e pragmaticamente na redução do desamparo da vítima.


O próprio sistema de justiça prevê formas de compensação racionais, das quais a principal é a indenização à família da vítima. O art. 336 do Código Processual Penal prevê que o dinheiro pago como fiança servirá, dentre outras possibilidades, para indenizar e reparar o dano causado pelo crime. A indenização à família da vítima é prevista tanto para sanar o abalo moral sofrido quanto pela perda dos rendimentos futuros que o filho, ao crescer, potencialmente traria à família trabalhando. Há precedentes inclusive para casos de morte acidental de filho menor, como previsto pela Súmula nº 491 do Supremo Tribunal Federal e também reconhecido na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.


Nesse sentido, os R$ 20 mil pagos pela ré seriam dedicados ao final do processo pelo juiz como indenização à família da vítima. Inclusive, é possível que o valor de R$ 20 mil seja revisado e aumentado, considerando que há casos de indenização de 60 mil reais para cada familiar na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Portanto, pelo valor pragmático e simbólico que a reparação à família da vítima possui, deve ser esse o principal resultado buscado numa eventual condenação.


Mesmo assim, é claro que a pena de prisão não deve ser ignorada. Contudo, o foco apenas nesse tipo de punição é contraproducente e pode até mesmo levar a resultados indesejáveis. Por exemplo, caso a ré seja acusada de homicídio doloso, hipótese com pena mais elevada, ela seria submetida a júri popular. Nesse caso, é possível que os jurados entendam que não houve homicídio doloso, já que seria (no mínimo) desafiador convencê-los dessa tese. A decisão seria então uma desclassificação para o crime de homicídio culposo ou abandono de incapaz qualificado, hipóteses mais adequadas. Seguir o ritual do júri poderia inclusive resultar numa prescrição da pena caso os jurados decidissem pela desclassificação do crime para um mais brando, já que o processo do júri é relativamente mais demorado que o normal por suas particularidades e agora encontra-se ainda mais lento devido à suspensão dos júris por conta do coronavírus. Por isso, o caminho míope da prisão como punição por punição, sem considerar o tecnicamente correto e o pragmaticamente justo, não é o adequado.


Em resumo, o caso Miguel reflete a revolta que o sistema de justiça causa nos brasileiros. Ele expõe a seletividade na aplicação das garantias processuais que deveriam ser aplicadas a todos os réus, independentemente de raça ou condição econômica. Contudo, essa revolta deve ser traduzida em soluções juridicamente adequadas, visando à redução do desamparo aos mais afetados pelo crime, a família da vítima. A fixação de uma indenização alta é apropriada, somada a uma pena de prisão proporcional ao delito que foi cometido, sem excessos desnecessários. O caso sozinho não solucionará as mazelas que assolam o país, mas que o seu desfecho ponha um mínimo de conforto aos que sofreram a dor desta tragédia e aponte para uma justiça mais justa em todas as suas dimensões.


Agradeço a Lucas Monteiro, Alice Gaudiot, Sofia Melo, Beatriz Melo e Joel Nascimento pelas conversas que inspiraram as ideias dessa coluna. Todas as opiniões e equívocos que não fazem jus à qualidade dos ensinamentos desses amigos são de minha responsabilidade exclusiva.


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