Reportagem por Alice de Souza
A última vez que Inabela Tavares, 34 anos, saiu de casa sem medo foi há duas semanas. Ela havia ido celebrar com a família o aniversário do projeto Praia sem Barreiras, na orla de Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Ainda no caminho, começou a passar mal e precisou ser socorrida. Com dor no peito, no corpo e de cabeça, foi levada para o Hospital da Restauração (HR), onde passou por uma bateria de exames e foi liberada. Não era nada, disseram. No último dia 26, os sintomas voltaram, junto ao cansaço, febre e vômitos. Em casa, Inabela passou 15 minutos tentando uma resposta no 136, número do Disque Saúde, do Ministério da Saúde. Estava ansiosa, angustiada. Precisava saber se poderia estar com Covid-19.
Sem resposta no 136, tentou o telefone do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu). Foi orientada a ligar para o 0800 281 1520, da Ouvidoria Municipal de Saúde do Recife. Passou mais 17 minutos e 38 segundos na linha, esperando. Inabela não queria sair de casa. Àquela altura, as recomendações de isolamento social por causa do novo coronavírus circulando na capital pernambucana já ecoavam pela cidade, nos telejornais, na voz das autoridades. Para ela, porém, não havia outra saída. Era preciso quebrar a regra.
Às 23h, Inabela correu para a Unidade de Pronto Atendimento da Caxangá. Lá, mediram os batimentos cardíacos, verificaram a ocorrência de febre e medicaram para as dores abdominais. A insistência de Inabela para saber a origem daqueles sintomas tinha uma razão. Ela não queria integrar as estatísticas de uma emergência de saúde de proporções globais de novo. Em outubro de 2015, Inabela se tornou uma das protagonistas da epidemia de zika vírus no Brasil. Deu à luz a Graziella Tavares, com síndrome congênita do zika, hoje com 4 anos. Descobrir se está ou não com covid-19, também é vital para salvar a vida da filha.
A nova rotina diante do coronavírus
Graziella Tavares, a Grazi, tem limitações cognitivas e comprometimentos de saúde consequentes da síndrome congênita do zika vírus. Ela foi um dos cerca de 450 casos confirmados da doença em Pernambuco, epicentro da epidemia que ocorreu em 2015. A menina convive com rinite alérgica e dificuldade de respirar, em função de um estreitamento de coana, uma malformação congênita rara que se caracteriza pelo estreitamento da abertura nasal posterior. Por causa de acúmulo de saliva, têm dificuldades de deglutição, nem sempre consegue respirar e comer ao mesmo tempo. Nos últimos quatro anos, passou por sete cirurgias.
A saúde de Grazi é frágil. A imunidade, sempre baixa. Motivos suficientes para a família manter o maior nível de cuidados possível. Qualquer resfriado para Grazi nunca é tratado como qualquer resfriado, pois pode evoluir com rapidez para um quadro grave. Mais do que isso, traz sempre de volta a companhia do medo que circunda a família desde que disseram a Inabela e o marido, Felipe Tavares, 35, que a criança não sobreviveria ao terceiro mês de vida. Grazi venceu o zika. Segue vencendo, a cada conquista contabilizada. O receio da família, agora, é que outro novo vírus se aproxime deles.
Logo depois que nasceu e os casos de síndrome congênita ganharam visibilidade, Grazi iniciou uma rotina de terapias. Faz fisioterapia, fonoterapia, terapia ocupacional, musicoterapia e estimulação visual, na Fundação Altino Ventura e no Centro de Reabilitação e Valorização da Criança (Cervac). A família recebe apoio psicológico e psiquiátrico. As terapias - e a rede de apoio formada ao redor delas - permitiram a Grazi ficar em pé, balbuciar palavras como “pai”, enxergar objetos à distância de um metro, buscar objetos, dar os primeiros passos.
Porém, desde que a covid-19 começou a se espalhar pelo Brasil, as terapias foram paradas. A FAV suspendeu as atividades desde o dia 20, com o objetivo de diminuir a aglomeração e conter a proliferação do novo vírus. O retorno está previsto para acontecer dentro de 20 dias. Inabela já não tinha ido para o atendimento previsto no Cervac dia 17, tinham avisado que quem estivesse com sintomas de resfriado deveria permanecer em casa. Agora, não sabe se Grazi terá retrocessos nos tratamentos.
“Meu Deus, vamos ter que começar do zero? Nosso medo é as crianças perderem tudo o que estão aprendendo, conquistando. Tem coisas que dá para fazer em casa, outras não. O tempo sempre foi nosso inimigo”, conta Inabela. O momento é de apreensão. “Ver minha filha parada é muito sofrimento”, ressalta.
A família tem se virado como pode para manter as atividades de Grazi. “Botamos ela no andador, esticamos o braço, fazemos massagens e estimulação visual com lanterna”, explica Inabela, que tem sido acompanhada pelo marido, em férias desde que o Governo de Pernambuco ampliou restrições de isolamento social e decretou o fechamento de locais como comércios, escolas, bares e restaurantes.
O novo vírus também afeta a família de maneira indireta. Grazi recebe do município do Recife latas de suplemento Fortini e do leite Milnutri. Desde fevereiro, porém, a família não conseguiu pegar na farmácia da Policlínica Lessa de Andrade. “Liguei, mas a farmacêutica me disse que ligou para o setor de entrega e a informação é que não há previsão de normalizar, pois tudo lá está uma loucura por conta dessa pandemia. Minha filha está pagando por isso também”, lamenta Inabela.
Ela trabalhava como vendedora, mas precisou abandonar o emprego há anos para cuidar da filha, repetindo a realidade de 92% das das mães de crianças com síndrome congênita do zika, segundo a ONG União de Mães de Anjos (UMA). A renda de casa vem do marido, Felipe, mas ele está sem perspectiva de receber salário, depois que entrou de férias. Grazi tomava o suplemento alimentar cinco vezes por dia, agora só toma duas vezes, para reduzir o consumo do que resta. A menina perdeu 2kg. “Não sei o que vai ser da minha filha nem de nós se essa pandemia não acabar.”
Isolamento inquietante
Depois que as autoridades de saúde em Pernambuco começaram a pedir para as pessoas ficarem em casa, Inabela e Felipe reorganizaram a vida para evitar ao máximo a chegada da covid-19. Se para algumas pessoas o isolamento social vem sendo encarado como opção, para eles é uma necessidade. “A imunidade de Grazi é muito baixa. Qualquer mudança no clima ela já começa a espirrar. Com a mudança de tempo, chuva e sol, sempre acontece”, lembra Inabela. A família deixou de sair. Se um precisa estar fora de casa, o outro se tranca com a menina dentro do quarto até que as roupas sejam lavadas e higienizadas.
“Compramos um arsenal de álcool gel e álcool 70%. No começo da pandemia, fui ao posto de saúde perto de casa e falei com a diretora, que conhece a nossa situação. Conseguimos algumas máscaras e luvas, mas agora não tem mais. As máscaras que estamos usando foram um restinho que ainda sobrou. Estamos desamparados e com medo”, diz. As visitas, que já eram restritas, foram suspendidas na casa da família. “Só por telefone. ‘Oi’ pela janela.”
O isolamento traz à tona outra herança da epidemia do zika. Depressão, ansiedade e estresse são quadros comuns nas mulheres mães de crianças com síndrome congênita do zika, como mostrou um estudo realizado no Recife e Rio de Janeiro, publicado na revista científica Plos Neglected Tropical Disease. A pesquisa mostrou que 21% das mulheres entrevistadas relataram quadros graves de depressão, 31% de ansiedade e 41% de estresse. Diante do medo de um novo vírus voltar a comprometer o futuro da família, Inabela chora. “Não é medo, é pânico mesmo o que estou sentindo. É muita coisa que passa na cabeça da gente. A gente luta tanto contra o vírus e perder nossos filhos para outro? Vi um post no Facebook de uma mãe que o filho está com suspeita, fiquei desesperada”, explica Inabela. Na própria timeline, Inabela postou no sábado (28) um apelo. “Pedimos que tenham empatia por todos aqueles que têm uma saúde frágil, coloque-se no meu lugar, não se exponha, não nos exponha (...) Fique em casa, por GRAZI e por todos os outros que não podem ficar em casa”, dizia a mensagem.
A dúvida cruel
Por mais que estejam se protegendo, Inabela, Felipe e Grazi não têm garantia nenhuma que estão a salvo da covid-19. Na verdade, a situação para eles se tornou ainda mais dolorosa na noite do dia 26 de março. Além de ser medicada na UPA da Caxangá, Inabela recebeu um atestado médico informando que ela necessitaria de 14 dias de afastamento das suas atividades, tempo compatível com o isolamento recomendado de um caso suspeito de covid-19. Em outro papel, precisou assinar os seguintes dizeres:
“Estou ciente que meu caso está definido como caso suspeito baseado nos critérios definidos pelo Ministério da Saúde para infecção pelo novo coronavírus, e por se tratar de um quadro sem gravidade clínica estou sendo orientado a permanecer em isolamento domiciliar, até cessarem os sintomas. Declaro que fui informado de todas recomendações acima descritas.”
“Eu perguntei: só isso? Disseram que só poderiam fazer algum exame em pacientes graves.” A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os países realizem testes em massa para os casos suspeitos, com a finalidade de controlar a pandemia do Sars-Cov-2, o novo coronavírus. O Brasil, porém, sofre um gargalo nas testagens. Os resultados dos exames realizados, como mostra matéria da BBC Brasil, demoram até duas semanas para saírem. Também falta material para realizar os testes. Até o dia 18 de março, o Brasil havia realizado cerca de 46 mil, segundo o Ministério da Saúde informou à reportagem da revista Piauí.
A resposta à pergunta de Inabela tem fundamento em uma decisão do Governo Federal. Desde os primeiros registros públicos de casos de transmissão comunitária no país (quando não é possível identificar a origem do vírus), o Ministério da Saúde passou a orientar que apenas os pacientes graves ou profissionais de saúde fossem testados. A ausência de testagem em massa - estratégia conhecida por ter dado certo no controle da pandemia em países como a Coreia do Sul - abre espaço para as discussões sobre a subnotificação de casos no Brasil, como explicado em matéria o DW. E também para a inquietação de Inabela. “Eu disse lá na UPA: ‘então vai morrer é muita gente, viu?’. Peguei meus papéis e vim embora”, conta.
Grazi começou a ter febre há três dias. No sábado (28), vomitou algumas vezes. “Estou no isolamento e sem saber nem se é o vírus. Tenho sintomas, mas não tenho certeza. Posso estar contagiando minha filha, a casa. Como vou saber? Eu queria mesmo uma bola de silicone, uma caixinha, para colocar a minha filha lá e só tirar quando passasse isso tudo.”
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