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O impacto do coronavírus nas feiras de Pernambuco


Arte: Cora Sales

Em um mundo sem pandemia, sexta, sábado e domingo são dias cheios para o agricultor Antônio Silva, 46 anos. É a parte da semana em que ele vai para as feiras livres, vender as frutas e hortaliças que planta na comunidade quilombola Lagoa do Bento, na cidade de Itaíba, Agreste pernambucano. Esta semana, pela primeira vez nos últimos quatro anos, Antônio não sabia como seriam esses dias. A proliferação de casos de covid-19 já havia mudado a rotina das feiras onde comercializa há um mês. A interiorização crescente dos casos em Pernambuco, na última semana, acelerou esse processo, com a proibição de algumas delas, deixando os pequenos produtores na incerteza.


Sexta-feira seria dia de acordar às 3h, colocar no carro a carga de coentro, macaxeira, pimentão e batata e partir para a cidade de Tupanatinga, a 17 km da comunidade onde mora. No último dia 26 de março, contudo, por meio do decreto municipal 019/2020, a prefeitura da cidade já havia proibido a comercialização de roupas e animais vivos na feira livre. Da mesma forma, a participação de feirantes de outros municípios, reduzindo as chances de venda de Antônio Silva. Tupanatinga entrou para as estatísticas de municípios com casos confirmados de covid-19 em Pernambuco no domingo (19).


Esse novo cenário voltou a atingir a vida de Antônio. No sábado, ele estava indo para a feira de Itaíba já em um esquema diferente do habitual. A feira de lá estava funcionando com barreiras sanitárias. “Orientamos os feirantes a fazer um distanciamento de cinco metros entre as barracas. Equipes do município passaram a ficar nas entradas e saídas, com álcool em gel, fazendo a higienização de quem entra e sai. Limitamos o comércio à venda de frutas e verduras e distribuímos máscaras para os feirantes”, explica o secretário de Saúde de Itaíba, pedro Teotônio. Também foram instaladas pias móveis nas feiras livres, para a lavagem das mãos.

A quantidade de barracas em Itaíba reduziu de 70 para 20, o fluxo de clientes, em 50%. O município estava preparando outras medidas para garantir o funcionamento da feira, mas reduzir o risco de contágio. Os feirantes de outras cidades iriam atuar nos dias de semana, em barracas colocadas na praça principal, que permite um maior espaçamento entre os locais de venda. No sábado, ficariam só feirantes locais, como Antônio. “De início, proibimos as feiras, mas sentimos que elas poderiam continuar se fosse estabelecido um dimensionamento”, lembra o secretário de Desenvolvimento Econômico, Gonçalo Vieira.

Horas depois de conversar com a reportagem da Retruco, Gonçalo precisou mudar o discurso. A confirmação do caso em Tupanatinga obrigou a prefeitura local a tomar medidas mais restritivas. A feira livre foi suspensa e barreira sanitárias foram montadas na entrada e saída da cidade. Antônio recebeu a notícia com apreensão. “Estava tendo a feirinha da comunidade, mas agora nem isso. Está muito difícil, não imagino como vai ser se demorar mais um ou dois meses. A gente vai empurrando com a barriga, como diz o brasileiro.” Em Tupanatinga, o receio se repete entre os colegas de Antônio. “Se essa doença não acabar, vai ser muita gente morrendo de fome, viu? Não tem gente para comprar nem coisa para vender”, conta a agricultora e feirante da cidade Luciana Calado, 27, que comercializa hortaliças.


Pernambuco tinha até o dia 26 de abril 4.507 casos de covid-19. A pandemia chegou pelos bairros de classe média alta da capital, Recife, e começou a se espalhar pelo interior. A nova doença segue o rastro da BR-232. A rodovia conhecida por permitir o fluxo de pessoas e negócios pelas regiões pernambucanas, anunciada como um projeto de desenvolvimento do estado, virou “vetor” do vírus. “A Região Metropolitana do Recife concentra 80% dos casos, por isso se fala mais nela no momento. Mas é natural que haja uma expansão da doença para o interior. E isso está seguindo o fluxo da BR-232”, afirmou o secretário de Saúde de Pernambuco, André Longo, na segunda-feira (20).

Com 552 quilômetros de extensão, a BR-232 vai até a cidade de Parnamirim antes de mudar de nome e seguir até Araripina. Nas últimas semanas, como mostrou a BBC, a maioria dos municípios com novos casos estava no entorno dela. Os casos em Pernambuco estão distribuídos por 102 municípios, além do Arquipélago de Fernando de Noronha, dos quais 74 são cidades do interior.


Com 36 casos, Caruaru, que tem uma das feiras livres mais famosas do Nordeste, já havia mudado a rotina desse tipo de comércio desde o dia 26 de março. “As pessoas devem se limitar a compra e o imediato retorno a sua residência. Já as pessoas idosas ou que se enquadrem no grupo de risco, como sempre lembramos que devem evitar ir às feiras”, pontou o secretário de Serviço Público de Caruaru, Ytalo Farias, na época. Além da feira principal, as medidas mudaram a rotina de outras feiras da cidade. A do bairro de Salgado passou a acontecer no Pátio de Eventos Luiz Lua Gonzaga. Outras foram expandidas para as vias locais, aumentando o distanciamento entre as bancas.


As feiras também sofreram alteração de rotina em outras cidades. Em Timbaúba, a comercialização no Centro, que antes acontecia em três dias, agora ocorre em dois. Nas duas feiras de lá, passou a ser permitido apenas o comércio de alimentos. É isso que preconizam os decretos do Governo de Pernambuco, que entendem o comércio de alimentos como serviços essenciais. Contudo, com a redução da demanda, há também mudança na oferta. Em Águas Belas, onde só os agricultores da região estão comercializando, o preço dos alimentos subiu. “O coentro custava R$ 0,50, estão vendendo a R$ 1,50 lá. Tomate, que era R$ 2,50, lá está sendo vendido por R$ 5”, explica a dona de casa Josélia Moraes, 49 anos, comerciante.


Em Saloá, onde Josélia mora, os clientes foram orientados a ir à feira sozinhos, fazer as compras e retornar de imediato para as suas casas. A cidade chegou a distribuir máscara e álcool em gel aos feirantes. Das 170 barracas que costumam ser instaladas a cada feira, 38 estão abrindo. “A feira em Saloá está muito reduzida, está bem diferente. Como diz meu avô, pode soltar um boi brabo dentro da feira que não pega ninguém. Mas aqui a gente ainda tem muita produção, então é mais tranquilo que em outras cidades”, conta.


Feiras agroecológicas também foram atingidas


O Recife é conhecido por ter sido uma das cidades pioneiras no Nordeste na implentação de feiras agroecológicas. A primeira experiência do gênero na capital é a Feira Agrocológica das Graças, realizada na madrugada do sábado, há mais de 20 anos. Lá, é o ponto de encontro semanal do agricultor Adeildo Silva, 42, com os clientes. Ele costuma sair toda sexta-feira de Bom Jardim, a 100km, para vender as frutas e hortaliças que cultiva. Em um mundo sem pandemia, no próximo fim de semana Adeildo estaria vendendo banana, abacate, acerola e outras frutas da época. Contudo, já faz um mês que ele não vai.


O avanço da pandemia de covid-19 “afetou por completo”, como diz, a rotina dele. A pedidos da esposa, de 32 anos, e de uma tia, de 79, que vive na casa do lado, Adeildo suspendeu o trabalho nas Graças. “Sabia que o foco era o Recife, mas que ia chegar no interior e fiquei preocupado, com medo de trazer a doença. Se fosse só por mim, eu ia, mas tenho menino pequeno, idosos na família. Aí decidi me resguardar um pouco. Esperar ver se temos uma boa notícia de diminuição de casos”, diz. Ele também havia iniciado o serviço em uma feira recém-inaugurada em Olinda, que precisou ser interrompida depois de duas edições.


Se antes a rotina de Adeildo incluía quatro dias dedicados a separar material e levar para o comércio nas feiras agroecológicas, agora a semana é toda de trabalho na roça. “Fico trabalhando, limpando o mato, organizando a lavoura. O problema é que a renda caiu total. A gente vai se controlando, queimando a gordurinha que juntou e esperando ver se atravessa essa”, explica. Com 15 anos de trabalhos ininterruptos na feira das Graças, Adeildo nunca havia passado tanto tempo distante. “A não ser um feriado, um dia doente, ou se Natal e Ano Novo caíssem num sábado”, diz.


A situação econômica dos pequenos produtores diante da pandemia acendeu o alerta de entidades que atuam direto com eles, como o Centro Sabiá. “As feiras são circuitos curtos de comercialização. Elas fazem com que os produtores sejam melhor remunerados, pois não há tantos atravessadores entre o produtor e o consumidor”, explica o assessor de mercados do Centro Sabiá e coordenador da Comissão de Produção

Orgânica de Pernambuco, Davi Fantuzzi.


Ação do Centro Sabiá na Comunidade de Palha do Arroz em Recife / Foto: Ana Olívia Godoy / Acervo do Centro Sabiá

Segundo ele, muitas das famílias que trabalham com a agroecologia já estavam sofrendo diante dos cortes promovidos pelo Governo Federal há quatro anos. “Há um desmanche da política pública para a agricultura familiar. A gente viu algumas medidas sendo adotadas, no sentido de maior facilidade de liberação de crédito para suprir a agricultura familiar nesse período, mas há uma distância entre o que é dito e o efetivado”, lembra.


No último dia 9, o Ministério da Agricultura havia anunciado medidas para os pequenos produtores de flores, hortifrútis, leite, aquicultura e pesca. Foi criada uma linha de crédito para agricultores familiares (Pronaf), com taxas de juros de 4,6% ao ano e prazo para pagamento de três anos, incluído um de carência. O receio das entidades, contudo, é que a dificuldade já existente de conseguir crédito entre os produtores do Nordeste se torne ainda maior diante do trabalho remoto de instituições e órgãos ocasionada pela pandemia.


Diante disso, movimentos e organizações sociais do campo e da cidade apresentaram ao Governo Federal uma proposta para fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), demandando o aporte emergencial de R$ 1 bilhão. O pedido prevê a mobilização de 150 mil famílias de agricultores, com a aquisição de 250 mil toneladas de alimentos, nos próximos três meses. “Esse era um programa importante, pioneiro no país, mas que havia morrido”, lembra Davi Fantuzzi. No Recife, o Centro Sabiá está comprando alimentos da agricultura familiar para distribuir a mulheres em situação de vulnerabilidade social e para produzir, junto ao Armazém do Campo, as marmita solidárias distribuídas à população de rua.

Ação do Centro Sabiá na Comunidade de Palha do Arroz em Recife / Foto: Ana Olívia Godoy / Acervo do Centro Sabiá

O vazio vai além da questão financeira

Pernambuco tem 68 feiras agroecológicas, das quais 42 ocorrem no Recife. Pelo menos sete delas continuam acontecendo, mas a pandemia alterou por completo a dinâmica. Na feira das Graças, que costuma funcionar com 21 barracas, apenas 10 estão abrindo. Uma delas é a de Jocilene Ferreira, 37 anos. Moradora de um sítio na zona rural de Gravatá, Jocilene trabalha na feira há 15 anos. Lá, tem duas barracas, uma para hortaliças e outra para os lanches. Com a redução do público e as medidas restritivas de circulação de pessoas no Recife, agora está abrindo só uma.


Espaço Agroecológico das Graças / Foto: Davi Fantuzzi


A barraca de lanches, onde vendia pastéis naturais, sanduíches, esfirras e outros salgados, deixou de ser um point para o café da manhã dos recém-saídos das festas ou recém-chegados para as compras. “Esse era um momento de encontro, já que a gente tem uma relação familiar com os clientes. Era um momento de bate-papo. Aí, de repente, a gente olha para a feira e vê ela deserta”, conta Cilene, como é conhecida entre os frequentadores. Antes, Cilene costumava chegar por volta das 22h e permanecia na rua onde acontece a feira até as 10h. Agora, o trabalho começa 1h e termina antes das 8h.


A redução dos clientes trouxe um prejuízo financeiro, já que a produção segue uma programação de acordo com as feiras. Porém, o maior lamento de Cilene é outro. “Nosso público é bastante idoso, que agora está em isolamento social. Eles ligam, dizem que estão morrendo de saudades, pedem a vizinhos e amigos para virem buscar os produtos. Mas é difícil não ter contato com o consumidor, não poder cumprimentar”, conta.

Cilene, assim como os outros produtores, tem medo de também levar a pandemia para a comunidade onde vive. “A gente vive isolado, já nasceu isolado do contato com a cidade. Mas precisamos trabalhar. Por isso, quando chegamos em casa depois da feira, a primeira coisa é tomar banho, lavar as coisas.” Os dias dela são divididos entre tentar se proteger, fazer o possível para manter a normalidade no trabalho e esperar as novas notícias sobre o destino das feiras. “O psicológico fica abalado, a gente vive sem saber se amanhã ou depois as feiras serão proibidas.”


Nas Graças, foram tomadas algumas medidas: distribuição de máscaras, de potes de álcool em gel e colocadas fitas de isolamento, para impedir o contato dos clientes com os feirantes e os alimentos. “Chegamos a fazer a distribuição para três feiras, mas isso ainda é muito pouco se considerado o universo do Recife e do interior”, lembra Davi Fantuzzi. A Comissão de Produção Orgânica de Pernambuco emitiu comunicado no qual orientou os feirantes a aumentar o máximo o espaço entre as barracas, a usar e disponibilizar álcool em gel para os clientes e a passar álcool 70% nas máquinas de cartão, sempre que forem utilizadas.


A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) criou um guia para orientar a realização de feiras seguras no país durante a pandemia. Entre as recomendações, está o atendimento de uma pessoa por vez e a colocação de uma faixa na frente da barraca, a um metro de distância, para demarcar a proximidade dos clientes com os comerciantes. A Secretaria de Desenvolvimento Agrário de Pernambuco também emitiu uma nota de esclarecimento, reafirmando que de acordo com o decreto estadual nº 48.832, de 19 de março de 2020, as feiras orgânicas e agroecológicas do estado estão isentas das restrições de funcionamento e orientando os feirantes.


Procurada pela reportagem, a Secretaria afirmou que o estado vai investir R$ 1 milhão dentro do Programa Compra Local para adquirir a produção de associações e cooperativas rurais. As mais de 200 mil toneladas de alimentos in natura e processadas adquiridas, segundo o estado, serão destinadas a famílias em situação de vulnerabilidade. Em nota, o órgão disse também que disponibilizou técnicos, extensionistas e fiscais dos órgãos vinculados à secretaria para auxiliar municípios e agricultores(as) familiares no processo de cadastramento para receber o auxílio emergencial de R$ 600 oferecido pelo Governo Federal.


O Governo de Pernambuco afirma ainda que realizou a confecção e distribuição de panfletos orientadores em sete feiras da RMR e 12 banners em seis feiras da RMR. Da mesma forma, distribuiu EPIs para 200 feirantes e 290 litros de álcool em gel. As ações, porém, concentradas todas na RMR. A SDA tem um Whatsapp - (81) 94887210 - para o esclarecimento de dúvidas sobre o funcionamento das feiras. Por fim, um Grupo de Trabalho (GT) foi formado com o objetivo específico de esclarecimentos e prevenção de impactos da pandemia nas feiras.


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