Coluna por Amanda Borba
A modernidade matou o conceito grego de paidea. Este entendia a formação do indivíduo em sua plenitude. Educação, por exemplo, envolvia diversas áreas do conhecimento como gramática, retórica, educação física, música e outras artes. Só assim, compreendiam os gregos, seria possível se desenvolver como um cidadão ativo na sociedade. Para tanto, era igualmente necessário cultivar a alma, a mente e o corpo.
Os tempos modernos fragmentaram a vida, o conhecimento e, consequentemente, o homem. Catalogou espécies de seres vivos, dividiu-os em Reinos, esboçou tabelas e fragmentou o conhecimento em disciplinas, que deveriam ser ensinadas nas escolas, em horários fixos e espaços delimitados. O controle sobre o corpo, nesse contexto, foi de fundamental importância para fazer a nova roda girar.
Nosso corpo foi – e segue sendo – alvo de inúmeras miradas e apreciações. E, acredito eu, nesses meses, mais do que nunca, quem ainda não tinha percebido isso pôde comprovar nitidamente como ele é um objeto de interesse(s). Para nós, indivíduos da pandemia, o corpo ficou grande demais para uma casa só; não conseguimos dar vazão a ele através dos movimentos cotidianos, do ir e vir do trabalho, da canseira do dia a dia. Mas estamos exaustos de carregá-lo. Há uma sensação permanente de não caber mais em si. Por quê?
Costumamos falar de saúde do corpo, na contemporaneidade, como algo estritamente relacionado ao biológico. Dizemos: coma isso, não coma aquilo, não fume, não beba, não se machuque, exercite-se. Tudo isso sempre se referindo a uma esfera muito mais física. E embora o físico guarde relação com outros elementos que fazem parte do que somos, é importante estar atento para a falácia do autocuidado apenas sob um ponto de vista. Quem define a vida a partir de uma perspectiva apenas biológica compreende-a de maneira insuficiente, incompleta, que não leva em consideração que ela é também intensidade, potência plástica; ignora a subjetividade, os sonhos e o inconsciente – onde, de fato, residimos. A Biologia não está errada, apenas se propõe a olhar para uma faixa limitada do que somos.
Valorizar e cuidar do corpo também não é estar atento ao corpo social, ao corpo do trabalho, atravessado pelas relações de poder, pelos estereótipos e pela culpa, mas, como diria a filósofa e poetisa Viviane Mosé, “é valorizar a porção da vida que eu trago em mim”.
A paidea, dos gregos, ideia com o qual iniciamos esse texto, mostra que a compreensão do sujeito a partir da união entre o corpo, o que eles entendiam como alma e a mente é mais antiga do que imaginamos. E embora o conceito de corpo tenha mudado ao longo dos séculos – já que não dá para ignorar que, de Platão a Nietzsche, pula-se da água para o vinho, ou melhor, do ideal para o presentificado –, ainda nos relacionamos muito pouco com o corpo enquanto presença e abrigo do nosso pensamento. É difícil para nós compreender o silêncio, e talvez por isso mesmo o isolamento social tem desafiado as pessoas a um movimento curioso, que é o de se ouvir.
Passado o momento das medicações mirabolantes, da vitamina C, do zinco, do álcool em gel, em geral, a impressão que tenho é que estamos olhando para dentro mirando um outro lugar, o lugar em que guardamos o nosso silêncio, o nosso segredo. (E isso me faz lembrar do depoimento da atriz Bruna Linzmeyer no dia do orgulho LGBTQI+, quando ela alerta para o fato de que precisamos ouvir os nossos desejos). Daí boa parte das pessoas – as que podem, é claro – recorrendo à meditação, à yoga, à jardinagem, ao fazer pão. Perceba que são todas formas de agir no silêncio.
É tão difícil quanto necessário entender que o nosso pensamento se organiza da mesma forma que o nosso corpo, não são duas coisas separadas. A experiência de fazer um pão, de tocar na terra, de escutar a nossa respiração é tão corporal e sensorial quanto de formação subjetiva. Tudo isso determina, sim, a nossa vida. Também podemos dar como exemplo a organização espacial da nossa casa. “Mude a disposição dos móveis da sala” é um conselho que não se aplica apenas às mobílias de fora. Outro dia uma amiga me disse: “Pintei a parede da minha sala e isso me deixou feliz”.
E é isso que perdemos de vista no cotidiano da produtividade capitalista, que não nos permite estar presente para nós mesmos, para escutarmos um pouco. Perdemos a dimensão do nosso corpo que não é suporte. Aliás, precisamos parar de entendê-lo como suporte. E se foi preciso uma pandemia para chamar a nossa atenção para isso, em vez de arrastarmos nosso corpo exaustos, podemos ressignificar o momento para entende-lo como uma oportunidade de conhecermo-nos a nós mesmos para reconectarmos com o verdadeiramente essencial.
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