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Denúncias sobre trabalho escravo e tráfico de pessoas crescem em Pernambuco durante pandemia

Reportagem: Alice de Souza

Ilustração: Iasmin Vieira

Lourenço*, 47 anos, chegou para trabalhar em uma fazenda da cidade de Bezerros, Agreste pernambucano, em julho de 2020. Ficava 24 horas disponível para o dono e ocupava várias funções: cuidar de um cavalo doente, alimentar os cachorros, aplicar agrotóxico na lavoura. Não tinha local para comer, beber água ou fazer as necessidades fisiológicas. Em oito meses de serviço, não recebeu remuneração. O patrão diz que era uma oportunidade de trabalho. Lourenço, com deficiência mental, sequer tinha discernimento para entender o que estava acontecendo. Foi resgatado por estar em situação análoga à escravidão em março deste ano, após denúncias.


Em 2020, a cada oito dias, o Ministério Público do Trabalho em Pernambuco recebeu uma denúncia de trabalho escravo e tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo. Foram 43, o maior número dos últimos quatro anos. Delas, 13 viraram um inquérito civil, isto é, tinham dados e elementos suficientes para serem investigadas. Na prática, uma em cada três situações denunciadas ao MPT desde 2016, em Pernambuco, ocorreram no ano passado, em meio à pior taxa de desemprego dos últimos oito anos no estado e num momento em que a capacidade de fiscalização de violações trabalhistas esteve reduzida devido à pandemia.


Pernambuco, inclusive, estava na contramão do país. Em todo o Brasil, o número de denúncias de casos de trabalho escravo e tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo diminuiu no ano passado, em comparação com 2019. Já em 2021, a situação é crítica no país inteiro e o estado acompanha a tendência. Até o começo de abril, houve 10 denúncias, com seis pessoas resgatadas. Uma delas foi Lourenço. As outras cinco foram resgatadas por trabalho escravo em um parque de diversões no Cabo Santo Agostinho, em janeiro.


No Brasil, em três meses e meio, foram mais de 450 denúncias, metade do registrado ao longo de todo o ano passado. “Proporcionalmente, em 2021, o número está muito alto”, alerta o procurador do Ministério Público do Trabalho de Pernambuco Ulisses Dias de Carvalho. Segundo ele, há ainda o risco de que os casos concretos sejam maiores que os dados divulgados, por fatores que incluem desde o medo dos trabalhadores de ficarem em situação de desalento, quando as pessoas desistem de procurar emprego porque não têm esperanças de que irão encontrar, até pela falta de informação. “A subnotificação é aterradora. Normalmente, pessoas submetidas a esse tipo de crime são tão vulneráveis que nem sabem que podem denunciar. Não sabem que têm direitos”, afirma o procurador.


Era o caso de Lourenço, que comia com os cachorros e tomava água salobra de um lago das redondezas. “Era uma negação total de proteção no ambiente de trabalho. Ele estava adoecido, com as mãos e as unhas do pé cheias de fungo. As mãos com uma evidente dermatite de contato com produtos químicos. Tinha uns 50 cachorros e ele comia o pão que servia para eles”, explicou o auditor fiscal do trabalho Carlos Silva, coordenador da fiscalização rural e do trabalho escravo em Pernambuco.


Fotos: Divulgação/Auditoria Fiscal do Trabalho de PE


Lourenço foi encaminhado para o acompanhamento do serviço de assistência social da prefeitura de Caruaru, encaminhado ao serviço de saúde e está em processo de reintegração à família, também moradora de Bezerros. O caso foi caracterizado como condição degradante e trabalho forçado. O fazendeiro negou as acusações. Ele foi autuado e penalizado a pagar indenização para vítima a título de dano moral individual e as verbas rescisórias no valor de R$ 11,8 mil.





Desemprego recorde em Pernambuco é indutor de vulnerabilidades para o trabalhador


O aumento de denúncias de trabalho escravo em Pernambuco converge com um cenário de vulnerabilidade socioeconômica e desemprego. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que o mercado de trabalho brasileiro teve perdas médias de renda individual do trabalho de 20% nos três primeiros meses da pandemia, e que ela foi maior (27%) entre a metade mais pobre da população. Segundo o estudo, o estado onde houve maior perda de renda foi Pernambuco. O ano fechou com 16,8% de taxa média de desemprego, a quinta pior do Brasil. Em março de 2021, segundo dados do Caged, o estado foi um dos três territórios brasileiros com pior saldo de emprego, com 2,7 mil postos de trabalho formal a menos.


Na prática, em um ano, perderam-se 374 mil postos de trabalho. Isso significa que seis em cada 10 pernambucanos em idade de trabalhar não tinham uma ocupação até o fim do ano de 2020, o pior nível de ocupação desde que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) começou a fazer o levantamento, em 2012. Tudo isso em um estado que já havia entrado na pandemia com 1,2 milhão de pessoas em condição de extrema pobreza, o maior patamar da série histórica, iniciada em 2012, e o dobro da média nacional na época.


“Com a crise econômica decorrente da pandemia, o aumento do desemprego e da precarização do trabalho, me parece uma decorrência lógica que os casos de trabalho escravo aumentem. Proporcionalmente, isso se reflete nas denúncias”, explica o procurador Ulisses Dias de Carvalho. Segundo o professor e coordenador da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG, Carlos Haddad, não há estudos que façam a correlação direta entre desemprego e aumento de casos de trabalho escravo. “Porém, o trabalho escravo não precisa da privação de liberdade, não é aquela imagem da pessoa acorrentada. É aquele em que o local tem piores condições de trabalho, e é natural que no momento em que está difícil arrumar emprego, com salários baixos, as pessoas se submetam a qualquer tipo de trabalho”, diz o professor.


De acordo com uma nota da Secretaria do Trabalho, Emprego e Qualificação de Pernambuco, cerca de 48% da população pernambucana está no mercado informal. O órgão afirmou que as condições de trabalho vem sendo precarizadas no país a partir da reforma trabalhista (conjunto de regras do Governo Federal, de 2017, que promoveu mais de cem alterações na Consolidação das Leis do Trabalho), da terceirização ilimitada e da aprovação do trabalho intermitente (nova modalidade de trabalho, também de 2017, que permite à empresa admitir um funcionário para trabalhar eventualmente, pagando-o apenas por esse período).

“A pandemia provocada pelo coronavírus, sem incentivo à vacina por parte do atual Governo Federal, acentuou ainda mais as desigualdades, estimulou disputas políticas que em nada acrescentam aos trabalhadores e prejudicou quem atua no mercado formal e principalmente informal”, afirma a nota.



Mesmo em polos industriais do estado, trabalhadores tem poucas opções


Há um ano, entre os meses de abril e maio, as indústrias de uma das principais zonas produtivas de Pernambuco alardeavam um possível colapso. As empresas do polo gesseiro, no Sertão do Araripe, responsável por produzir 95% do gesso consumido no país e por gerar cerca de 12 mil empregos diretos e indiretos, reportavam um queda de 80% nas vendas e demissão de 50% da mão de obra. A perspectiva era que menos de 10% das empresas continuassem funcionando. Não há informações oficiais se isso, de fato, aconteceu. Porém, o que se vê em 2021 na região, marcada por um histórico de condições precárias de trabalho, é o regresso de muitos trabalhadores ao setor, por falta de emprego.


Fernando*, 44 anos, tem orgulho de viver em Trindade, “a capital do gesso”. “Aqui, se a pessoa se forma professor e não acha vaga, tem que ir trabalhar no gesso, batendo pedra, calcinando, revestindo. A nossa cultura de sobrevivência é a agricultura ou o gesso. Ou você está na roça ou nas fábricas”, explica ele, que estava trabalhando no setor e perdeu o emprego na pandemia. Desde os 15 anos no gesso, começou enxugando os fornos para a calcinação, uma das quatro etapas de produção, quando a pedra da gipsita é decomposta. Também trabalhou enchendo caminhões e descarregando as placas nas fábricas. Estava atuando como mecânico em uma das indústrias do polo quando foi demitido, há seis meses. Fernando foi um dos 749 mil pernambucanos que procuraram trabalho entre os meses de outubro, novembro e dezembro de 2020, mas não encontraram.


“Tenho 44 anos e desde 7 anos que trabalho. Vendi picolé, fui engraxate, eu não consigo ficar parado. Quando estou parado, tenho gastrite. Mas tá difícil, eu procuro vaga agora e não acho. Com essa pandemia, só tem aumentado o desemprego. Se a gente for procurar aqui a galera que saiu do serviço, a gente enche um caminhão”, diz. A situação, em um dos principais polos industriais do país, acompanhou o cenário da região e do Brasil. Mais de 2,7 milhões de empresas fecharam na América Latina, e 44,1 milhões de pessoas ficaram desempregadas durante a pandemia, de acordo com informes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) das Nações Unidas.


O polo gesseiro, composto pelas cidades de Bodocó, Ouricuri, Ipubi, Araripina e Trindade, mobiliza desde 2015 uma ação permanente de fiscalização do Ministério Público do Trabalho. Em cinco anos, cerca de 150 empresas de calcinação e 30 de mineração foram fiscalizadas. Foram abertos 115 processos pelo MPT, que resultaram em 49 acordos cumpridos, nos quais as empresas sanaram suas falhas trabalhistas.


“A maioria dos trabalhadores eram informais, tinha muito acidente de trabalho fatal, com amputação de membros, trabalho de menores de 18 anos. Péssimas condições de conforto nos locais de trabalho, falta de equipamentos de proteção individual. Não havia nenhum programa preventivo e aí foram sendo ajuizadas ações civis públicas”, afirma o coordenador do Grupo de Trabalho do Gesso, o procurador da Procuradoria Regional do Trabalho da 6ª Região Rogério Sitônio.

A Retruco entrevistou cerca de 10 trabalhadores do polo gesseiro. Apenas um deles trabalhava em regime CLT. Fernando esteve entre os 51% de moradores de Trindade que receberam o auxílio emergencial. Agora, sem emprego e sem auxílio, não sabe o que fazer, vive apreensivo. No polo, ganhava um salário mínimo. “Sou pai de oito filhos. Eu digo pra você, R$ 150, R$ 250 ou R$ 600, como a gente pegou na última parcela, não dá pra passar o mês. Hoje o fardo de arroz tá custando R$ 140 na minha cidade. Aqui em casa, são dois fardos por mês.”


Cada vez mais, ele vislumbra a solução que leva muitos trabalhadores ao risco, aceitar uma oferta de emprego em outra cidade ou estado do Sul e Sudeste do país. Um movimento de migração que, não raro, se converte em tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo. Em Pernambuco, houve uma denúncia em 2020 e outra em 2021 de aliciamento para trabalho escravo. “A gente precisa, né? E geralmente quando não tem o que comer, a gente procura pra não ter que roubar, tem que trabalhar. Daqui pra o final do ano, a minha previsão é ir embora, se continuar do jeito que está aqui. Eu não vou passar fome. A gente tem que ir.”


Entre 2017 e 2019, 38 trabalhadores saíram de Pernambuco em busca de trabalho e foram vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho análogo à escravidão. Ainda não há dados de 2020 no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. “No Brasil, hoje em dia, quase não há a figura do trabalho forçado. Porém, hoje existe um exército de indigentes que trabalham por um pedaço de pão, topam tudo por uma questão de sovrevivência”, diz Carlos Haddad.


Morte e precariedade em ano sem fiscalizações presenciais no trabalho no Gesso


Estudante de geografia, Flávio Albuquerque, 26 anos, é agricultor e foi morar em Ouricuri depois de casar. Lá, não encontrou trabalho na zona rural. Em agosto de 2020, depois que parou de receber as parcelas do auxílio emergencial, arrumou emprego no gesso. Trabalhou um mês como ajudante da pessoa que faz as placas, o plaqueiro. A função dele era carregar os sacos de gesso pra encher os caixotes e levar as placas e blocos para secar ao sol. “Por conta da precariedade, todos os plaqueiros pediram demissão. Fiquei sem função e saí.” O último trimestre de 2020 foi uma saga, buscando um emprego fora do gesso. Sem encontrar e sem conseguir pagar as contas, Flávio resolveu voltar.


Da primeira vez que trabalhou no ramo, sem vínculo CLT, ganhava cerca de R$ 30 por dia. Começava a trabalhar às 6h, para uma jornada diária de 10 horas. Sem emprego, a renda caiu para zero. Tentou vender sorvete e churrasco em um acampamento, mas não conseguiu manter. O companheiro dele também estava desempregado. Em dezembro, Flávio trabalhou em uma marcenaria, por R$ 100 a semana. Em janeiro, cedeu ao gesso. “As contas estavam chegando, a gente estava vendendo o café para comprar o almoço. Meu companheiro chorava muito.”


Flávio agora ganha R$ 800 e trabalha em outras funções. Vai às fábricas calcinadoras buscar o pó do gesso e também pegar madeira para usar nos fornos usados para produzir os blocos. Tem dias em que sai às 6h e só retorna às 21h para casa. “Muita gente não quer, pois os empregos são tudo informal, não tem material pra proteger muitas vezes, no máximo o que dão é uma luva. Você sai branco de gesso. Mas é o que tem”, conta. Segundo ele, vários companheiros haviam decidido sair do gesso com o suporte do auxílio, mas regressaram quando o dinheiro parou de ser injetado pelo Governo Federal.


Maurício Soares, 28, gerente de uma calcinadora em Trindade, diz que foi difícil encontrar pessoas para trabalhar entre novembro e dezembro, o que levou a empresa a aumentar o valor do salário para atrair trabalhadores. “Agora aparecem três a quatro pessoas por dia pedindo emprego aqui”, conta.


Segundo Adonias Ribeiro, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) em Pernambuco, a maioria volta por não ter outro meio de sobrevivência. “As empresas anunciaram que iam parar, mas na verdade não parou. A mineração, pelo menos, não parou. Os que pararam foi por falta de recursos. E os demitidos saíram muitos deles sem direitos, por não ter carteira assinada. As condições permanecem precárias”, diz.

A Retruco procurou o Sindicato das Indústrias de Gesso do Estado de Pernambuco (Sindusgesso), que até o fechamento desta reportagem não respondeu.


As últimas fiscalizações do GT do Gesso do MPT na região foram em agosto e dezembro de 2019. A previsão era voltar em junho e dezembro de 2020, para dar continuidade e ampliar a fiscalização das empresas plaqueiras, mas a pandemia impediu “Mas as condições de trabalho lá sempre foram muito precarizadas. Efetivamente, houve ao longo desses anos uma pequena melhora nas condições de trabalho no polo, mas já temos notificações de que a situação degringolou no ano passado”, afirma o procurador Ulisses Dias de Carvalho.


Segundo ele, investimentos em segurança do trabalhador são considerados custos operacionais e, em momentos de crise como o trazido pela pandemia, costumam ser cortados. Em 2020, um trabalhador morreu em uma fábrica do polo gesseiro, em Araripina. O rapaz de 20 anos estava trabalhando há 15 dias em uma empresa do Distrito Industrial Centro e morreu depois de se desequilibrar, ao pegar uma pedra para colocar na máquina de britador.


A última morte na cidade por acidente de trabalho havia ocorrido em 2018. “Somente na próxima fiscalização é que poderemos comparar se a situação das empresas melhorou ou piorou. Só a fiscalização poderá nos dizer com segurança o cenário. Por parte do MPT, continuamos exigindo o cumprimento dos acordos”, diz o coordenador do GT do Gesso, Rogério Sitônio. O MPT, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Fundação Getúlio Vragas (FGV) e as prefeituras locais, estrutura um plano de convivência e desenvolvimento local para reformular a cadeira produtiva do polo gesseiro.


“Há duas linhas de atuação, uma da fiscalização, que ficou prejudicada por conta da pandemia, a outra é a do plano, para estabelecer políticas públicas e sociais a serem implementadas para melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores e das comunidades das cidades do polo gesseiro”, explica Rogério Sitônio. Entre as ideias, estão a de inserir a mão de obra feminina na cadeia produtiva, combater a sonegação fiscal, aumentar a arrecadação tributária e também qualificar os profissionais de saúde para identificação de doenças consequentes da atividade gesseira. “Há uma subnotificação nesse aspecto”, lembra o coordenador do GT. O plano tem previsão de publicação para o fim do primeiro semestre, com implementação das ações no segundo semestre de 2021.


Esta reportagem foi produzida com o apoio de uma bolsa de Thomson Reuters Foundation


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