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Inseminação caseira e o direito da maternidade lésbica


Reportagem por Juliana Aguiar

Arte: Gabriella Borges

Da infância ao envelhecimento, a maternidade costura grande parte das narrativas das vidas das mulheres,

em forma de romantismo, desejo, projeção e confirmação da feminilidade. Muitas vezes a maternidade aparece para as mulheres em caráter compulsório, imposto, outras por acidente, para algumas uma luta incessante enquanto para outras esbarra em uma barreira biológica. É o caso das empresárias recifenses Maria Cireno, 31 anos e Maria Eduarda Melo, 23 anos (@mainhasdeotto no Instagram), que estão esperando o primeiro filho, fruto de uma inseminação caseira. No dia das mães, a Agência Retruco fala da história do casal que fez uso do método informal, pouco conhecido na sociedade e muitas vezes tratado com estranheza.


Desde o início do relacionamento Maria e Eduarda tinham um sonho em comum: ser mãe. O momento de ter filho nunca é ideal para os casais, e não foi diferente para as duas. Equacionando a situação financeira, o espaço na casa e a mudança brusca na rotina, as duas foram construindo, aos poucos, os planos até decidirem que era o momento certo. “O problema é que para nós, mulheres lésbicas, não vai acontecer de simplesmente engravidar. Foi preciso que nós tomemos a decisão e, para gestar um filho, só tínhamos duas opções: clínica de reprodução assistida ou inseminação caseira”, afirma Eduarda.


O procedimento caseiro ocupa espaços de discussões em grupos de internet, e se tornou uma realidade palpável para mulheres que querem engravidar de forma independente, casais homossexuais femininos ou heterossexuais quando o homem apresenta algum problema de fertilidade. Os canais de comunicação possibilitam a busca por homens dispostos a ceder uma pequena quantidade de sêmen, para que possam inserir em seu corpo, em casa, para tentar realizar o sonho de milhares mulheres se tornarem mães.


Em uma rápida pesquisa, é possível encontrar dezenas páginas no Facebook. Há, ainda, grupos locais de WhatsApp propondo doações anônimas. No Facebook, o grupo fechado Inseminação Caseira - Testantes e Doadores conta com mais de 20 mil membros. No espaço, são compartilhadas dicas, modelos de contrato de anonimato e são feitos contatos com os doadores. Na descrição, a mensagem "somos um grupo de tentantes e doadores a fim de realizar o sonho de ter um bebê. Estamos aqui para juntos esclarecermos dúvidas sobre procedimentos e sobre doadores". Também não são aceitas manifestações de preconceito. "Aqui não aceitamos nenhuma forma de preconceito e nem pessoas que estão afim de sexo fácil, o importante é manter o respeito entre as partes", consta no sobre. Entre as publicações de um outro grupo intitulado Doadores de Sêmen, uma usuária afirma: "Tem doadores seríssimos comprometidos com a causa de doar para ajudar famílias que desejam essa realização, mas pude ver que também tem 'doadores não gratuitos' e pessoas que também não estão com a empatia necessária para ajudar", denunciou.


Foi nesses espaços que Maria e Eduarda começaram a se familiarizar com o método caseiro de inseminação e buscar os primeiros sinais de doadores de sêmen para realizar o sonho de gestar uma criança no ventre depois de saírem desesperançosas de uma clínica de reprodução assistida. "Nós duas fomos juntas a uma das maiores clínicas do Recife, estávamos bem ansiosas, mas desde o início a recepção não foi boa. A primeira pergunta que ouvimos da atendente foi: é casada? qual o nome do cônjuge?", conta Maria. Depois de explicar que eram um casal de mulheres lésbicas e que Maria teria interesse em gestar uma criança, ela encaminhada para uma sala de triagem onde fez a contagem de óvulos. A consulta com a médica, momento mais aguardado pelas duas, só aconteceu depois da triagem. "Na conversa, vimos que os valores são exorbitantes, muito maiores do que esperávamos, é meio desencorajador", pontuou. Os valores de inseminação artificial em uma clínica particular são altos. É preciso pagar pelo procedimento e também pelo esperma coletado do banco. Os pagamentos são feitos por tentativas. No caso de Maria e Eduarda, o orçamento girou em torno de R$ 5 mil reais e dava direito a duas tentativas. E as chances de sucesso é de 25%. Caso o procedimento não dê certo, o casal pode partir para a fertilização, que tem uma chance maior de êxito, cerca de 75%, porém os números passam para R$ 15 mil reais. Os números são gerais e incluem casais hetero e homoafetivos, que podem ter dificuldade para engravidar por outras condições de saúde.


"O que nos levou a optar pela inseminação caseira foi a barreira financeira, era a única coisa palpável para a gente. Maria já tinha passado dos 30 anos e queria muito engravidar. Vimos o método sendo feito pela primeira vez na série norte-americana The L Word, depois disso fomos pesquisar na internet, redes sociais, Youtube e reunimos todas as informações que conseguimos...", lembra Eduarda. Depois de oito meses buscando um doador e cuidando das taxas hormonais da receptora, o casal conseguiu engravidar. O sêmen foi doado por um conhecido das duas e injetado por Eduarda, com uma seringa comprada na farmácia, no corpo da companheira. O procedimento foi feito no quarto delas. Após dois ciclos de tentativas, Maria engravidou.


Fora do corpo, os espermatozoides sobrevivem pouco tempo, então o ideal é que sejam injetados imediatamente ou no máximo 15 minutos após a ejaculação. "Por isso fizemos todo os procedimentos na nossa casa. A gente comprou aqueles potinhos de exames esterilizados, luvas, seringas…. O doador vinha aqui em casa, ejaculava no banheiro, entregava para Duda, ela colocava na seringa (sem agulha!) e injetava em mim. Depois eu passava 40 min de pernas para cima", conta Maria. Na primeira vez, foram feitas inseminações 'dia sim e dia não', totalizando três tentativas na semana fértil. Após 15 dias, o casal fez o teste de urina e o resultado foi negativo. "A menstruação de Maria veio normalmente, então começamos a nos preparar para a segunda tentativa", explicou. Para facilitar o esperma a fazer o seu caminho, algumas pessoas utilizam lubrificante, mas não é necessário. Outra coisa que pode ajudar é se a receptora tiver relação minutos antes do sêmen ser injetado e aproveitar a lubrificação natural. Vale ressaltar, ainda, que a inseminação caseira deve ser feita sem contato sexual com a receptora porque trata-se de algo sem envolvimento sentimental.


Na segunda tentativa, Maria e Eduarda decidiram mudar a estratégia de acordo com um aplicativo que indicava os melhores dias na janela de fertilização: 'dia sim, dia não, depois dois dias seguidos'. Fizeram novamente o teste de farmácia e deu negativo, mais uma vez. Mas a menstruação não veio. "Fizemos mais testes de farmácias nos dias seguintes e todos deram negativos, o que nos deixou desanimadas. Mas depois de sete dias de atraso na menstruação, fizemos o exame Beta HCG e tivemos a melhor notícia: estávamos grávidas". Agora isoladas no Agreste de Pernambuco para evitar o contágio com o novo coronavírus, Maria e Eduarda se preparam para a chegada do filho, previsto para nascer em setembro deste ano.


A RECEPTORA

A decisão de quem iria gestar foi tomada de forma natural e em comum acordo. Maria é mais velha e sempre teve o sonho de gestar o bebê. Já Eduarda, sempre desejou ser mãe, mas nunca pensou em dar à luz a uma criança. A prioridade dela é adotar, o que está nos planos futuros do casal.


O DOADOR

"Passamos mais de um ano procurando alguém que se habilitasse para ser nosso doador. Conversamos com nossos melhores amigos, muitos se ofereceram, mas sabíamos que seria muito arriscado pela proximidade que temos. Alguns familiares nossos se mostraram dispostos a nos ajudar a encontrar um doador, mas só criamos expectativas e não conseguimos nada. Tentamos deixar o assunto um pouco de lado, e, em um acaso da vida, sentadas em uma mesa de bar, conhecemos o nosso doador", conta Maria.

"Nem acreditamos, no outro dia mandamos mensagem para confirmar. Conversamos com ele por dias e ele permaneceu certo sobre a decisão. Tínhamos muito medo que ele desistisse no meio do processo porque não sabíamos quantas tentativas seriam necessárias e se ele estaria disposto a ir até o fim, mas ele foi bem tranquilo e não estipulou um limite. Partimos então para o acordo, onde optamos por propor o anonimato dos dois lados para preservar as nossas famílias. Só quem sabe somos nós, a esposa dele e a nossa advogada", explica Eduarda. "Depois da decisão tomada, começamos a fazer a tabela de ovulação. Ele, por sua vez, passou a comer castanhas porque leu em algum lugar que era bom para o sêmen", contou, aos risos.


Para o doador*, foi uma prazer ajudar Maria e Eduarda a engravidar. "Para mim é uma escolha muito simples, não vi problemas e é uma honra poder ajudá-las. A relação familiar é construída a partir de quem cria, não é biológica. Eu quero ter filhos, mas doar o sêmen não altera em nada nos meus planos", explica. Para selar o acordo, as partes envolvidas assinaram um contrato de doação de sêmen que foi feito para registrar que o doador estava cedendo seus espermatozóides de forma espontânea, já que é proibida a venda de material genético.


O Código Civil prevê na Lei 9.434/97, em seu artigo 9º, que é permitido à pessoa dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, desde que não haja comercialização.

OS RISCOS

As condições de temperatura, higiene e segurança são alguns dos fatores que podem colocar em risco a mulher que vai receber a doação do sêmen fora de um ambiente hospitalar. A inseminação caseira não é ilegal, mas não é um procedimento recomendado pelo Conselho de Medicina devido aos riscos de contaminação ou infecção. O método pode acarretar riscos para a futura mãe e para o bebê, por conta do procedimento caseiro não passar por tantos exames, e o sêmen utilizado pode conter infecções sexualmente transmissíveis como sífilis, hepatite, HIV e zika.


A ginecologista Juliana Schettini diz, inclusive, não conhecer estudos ou profissionais que indiquem a Inseminação Caseira e que o método não é discutido em seminários ou congressos da área. Ainda de acordo com a médica, as técnicas de inseminação artificial ou fertilização in vitro são mais indicados por alcançarem melhores resultados. Para se resguardar, Maria e Eduarda tomaram as precauções necessárias e pediram que o doador fizesse um exame completo de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), além do espermograma para ver a viabilidade do esperma para a fecundação.


CONTRATO DE ANONIMATO

Além dos cuidados biológicos, há um fator ainda mais preocupante em relação ao doador: o anonimato. A única forma de separar completamente os envolvidos e evitar problemas no futuro é tendo um "intermediador" que faça com que as partes não se conheçam e não saibam quem são as outras, que não é o caso de Maria e Eduarda. Para se resguardar, elas assinaram contrato com o doador no qual ele abre mão da paternidade e concorda com o total anonimato sobre a doação. "Ficou acordado que não iremos buscá-lo como pai e nem ele irá requerer a paternidade. Há, entretanto, uma única cláusula que autoriza a aproximação em caso de doação de material genético para problema grave de saúde", explica Eduarda. Apesar de assinar contratos de confidencialidade, nada garante que o doador não vá reclamar a paternidade no futuro ou o próprio filho não vá querer descobrir quem é o seu pai biológico.

Para a advogada Camila Andrade, a partir do momento que existe o conhecimento, existem riscos e as partes precisam estar dispostas a corrê-los. "Mesmo colocando a proibição em tese no contrato, não é possível garantir que o doador não vai ressurgir depois reivindicando a paternidade nem que a própria criança não vai querer essa paternidade". Camila ressalta, ainda, que a validade do contrato é algo relativo, fruto de uma legislação duvidosa, sem regulamentação. "O nosso ordenamento jurídico não autoriza que a gente negocie sobre tudo e qualquer coisa. Se algum dia houver algum desentendimento entre elas e o doador isso pode virar um "problema judicial" e a própria validade do contrato pode ser questionada", conclui.



O REGISTRO

O processo de registro de nascimento do bebê no cartório ainda é uma incógnita para Maria e Eduarda. "Vai depender de como o cartório vai receber o nosso caso. Sabemos que tem cartórios que registram as duas mães sem problemas, desde que tenhamos união estável ou registro de casamento, que é o nosso caso, mas tem outros locais que não aceitam", pontua Maria. Alguns casais homoafetivos que geraram filhos por Inseminação Caseira podem ter dificuldades na hora de registrar as crianças por não ter as documentações que uma clínica de fertilização oferece. Neste caso, há duas opções mais usadas: um é o pedido de adoção da criança pela mãe que não gestou e outro é pedir a filiação socioafetiva. "O meu nome, como estou gestando o bebê, com certeza vai estar presente na Certidão e o pai vai constar como desconhecido. Caso não aceitem o nome de Eduarda, teremos que entrar com uma ação judicial e dentro de alguns meses será possível adicionar o nome dela", explica a engenheira.


O Código Civil prevê:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

(...)

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.


Para a advogada Camila Andrade, a legislação brasileira é defasada, mas destaca que o Código Civil reconhece como filhos os gerados por inseminação artificial heteróloga, ou seja, que usa um material genético de terceiro com autorização. "Independentemente de ser caseira ou não, foi uma inseminação artificial heteróloga e foi autorizada", destaca. A advogada lamenta, entretanto, que o processo tenha que ser feito extrajudicialmente. "É muito triste que um homem e uma mulher possam registrar uma criança sem nenhuma dificuldade mesmo sem sequer serem casados e duas mulheres casadas tenham essa dificuldade e precisem recorrer a uma ação judicial, submetendo as mães a uma burocracia, espera, aflição e incerteza sobre o nome das duas não constarem lá desde sempre. De acordo com a advogada, é neste ponto que a legislação precisa avançar. "Tratar das relações entre pessoas - não entre esposa e marido. E tratar da filiação com genitores - não com maternidade e paternidade. E assim desburocratizar e simplificar a formalização em cartório".


* As informações e sentimentos do doador foram repassadas por Maria e Eduarda, de forma sigilosa, para evitar o contato com a repórter e assim respeitar o anonimato.


 Um laboratório de jornalismo, criado por comunicadores do Nordeste, que se propõem a trazer o protagonismo as narrativas da região a partir de um ponto de vista questionador.

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