Reportagem: Alice de Souza / Produção: Alice de Souza, Bruno Vinícius, Luane Ferraz e Thiago Santos
João* vivia uma rotina de duas décadas de uso de substâncias psicoativas sem perspectiva de parada. Um ciclo sem fim aparente até uma manhã de 2012, quando ainda com os olhos semi-cerrados foi sacudido pela mulher, que lhe falava ao ouvido em tom grave: "está na hora de você se tratar e é agora". A voz era da esposa da época, com quem dividia a casa. João tentou resistir, disse não várias vezes, mas não restava opção. Dois homens estavam dentro do quarto e havia um carro na porta. O respaldo para levá-lo era o contrato com a clínica de reabilitação, assinado pela mãe. A visita era uma internação involuntária.
Esse dispositivo existe na legislação brasileira desde 2001, na lei 10.216, como modelo assistencial em saúde mental regulamentado pela portaria 2391 do Ministério da Saúde, em 2002. Nos últimos 15 anos, impulsionado pelo discurso da “epidemia de crack” e a criação crescente de clínicas de reabilitação, passou a ser cada vez mais defendido como estratégia de tratamento para uso abusivo de álcool e outras drogas no Brasil. Desde o ano passado, com a Lei 13.840/2019, que modifica a Lei das Drogas (11.343/2006), tornou-se realidade.
Pela legislação de 2001, a internação involuntária deve ser autorizada por um médico e informada ao Ministério Público Estadual em até 72 horas. O mesmo passou a valer para casos de dependência desde o ano passado. A diferença é que a lei de 2019 amplia o escopo de quem pode autorizar o procedimento, ainda que o país sequer tenha dados compilados sobre a quantidade e a condição em que essas internações involuntárias são realizadas.
Na prática, a internação involuntária para pessoas que usam drogas já era realidade antes de ser legal e se transformou em negócio ao redor das clínicas privadas. Ela impulsionou a criação de grupos especializados em “remoção” ou “resgate”, pequenos “sequestros” de dependentes nas próprias residências, e o trabalho dos “captadores”, uma rede de autônomos que recebem dinheiro das clínicas por indicar pacientes. Esses serviços podem ser encontrados em uma busca na internet e fechados com duas a três mensagens de Whatsapp. Tudo é feito em um contrato sigiloso com a família, geralmente seduzida por anúncios virtuais. “É uma indústria da internação”, define o antropólogo e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Ygor Delgado Alves.
O cliente é a família, a pessoa em uso problemático é o objeto do negócio. O processo de internação involuntária começa pelo convencimento dos familiares. Assim, a remoção obtém a força moral para acontecer. As empresas chegam ao alvo abusando do marketing online, com banners, participação em grupos de Facebook ou criando perfil nos buscadores. “É uma tática agressiva. Eles colocam anúncios de resgate 24h, parcelamento no cartão de crédito. A ideia é que a família, desesperada muitas vezes porque pegou o filho com maconha, acredite numa escalada até o crack e peça o serviço”, afirma o pesquisador da Unifesp.
O resgate pode ser feito pela própria clínica ou terceirizado com parceiros. É cobrado à parte do valor do tratamento, preço que varia de acordo com a origem e destino do dependente. Se for para sair de João Pessoa, na Paraíba, com destino a Pernambuco ou Rio Grande do Norte, o valor varia entre R$ 300 a R$ 1,5 mil, segundo valor levantado em pesquisa da Retruco com oito clínicas localizadas em Pernambuco e no Rio Grande do Norte. Já o tratamento varia de R$ 1,4 mil a R$ 8,3 mil mensais.
Quatro clínicas afirmaram fazer resgate por conta própria: Comunidade Há Esperança, Clínica Terapêutica Renascer, Centro Terapêutico Nova Aurora e Centro Terapêutico Libertação e Vida. Delas, apenas a Clínica Terapêutica Renascer afirmou a necessidade de um laudo médico. As outras disseram que basta uma autorização da família. “Em muitos casos, os médicos, se assinam, muitas vezes é depois que a pessoa já está internada”, afirma Ygor Alves.
Outras quatro organizações contactadas pela Retruco indicaram serviços terceirizados: Centro Terapêutico Reviver, Grupo Recanto, Novo Tempo e Centro Terapêutico Elo. Nesses casos, os valores do resgate repassados pelos parceiros variam entre R$ 800 e R$ 1,5 mil, também a partir de João Pessoa. Das quatro pessoas consultadas, três disseram que precisavam apenas de uma autorização da família. "Nós fazemos um trabalho de espera, como a polícia. Antes do horário, já encostamos, não usamos farda, ficamos como pessoas comuns. Antes da abordagem, pegamos informações como estatura e o perfil do paciente, para que a gente se aproxime da forma correta”, explicou um dos responsáveis por resgate indicado pelas clínicas.
Os resgates são realizados por empresas, muitas vezes, criadas por ex-internos das clínicas privadas. Eles não têm formação na área de saúde, contam apenas com a experiência de tratamentos prévia. Quando é considerado “profissional”, ocorre em ambulâncias ou carros blindados. Se amador, até em carros particulares emprestados. “São empresas especializadas em sequestrar usuários. As famílias assinam contratos, passam as coordenadas e eles mandam a equipe”, descreve Ygor Alves.
O método é confirmado pelo psicanalista e fundador do Grupo Recanto, que tem unidades em Pernambuco e Sergipe, Fabrício Selbmann. “Tem muita gente fazendo isso de forma clandestina. Eu não indico resgate. Eu digo para a família, procure algo profissionalizado, pois existe de todas as formas e jeitos. E recebo da porta para dentro”, diz. Ao entrar em contato com a Recanto, a Retruco obteve o número de um homem que faz resgate acompanhado de três socorristas.
Os garimpeiros de zumbis
A imagem da capa do Facebook traz em primeiro plano uma piscina cercada por um jardim com arbustos verdes, circundados por uma grama hermética. Poderia ser uma casa de praia, mas é a área externa da Clínica Terapêutica Renascer Natal, no Rio Grande do Norte. O último post da página da entidade, de fevereiro de 2020, afirma que não existe tratamento involuntário, mas internação involuntária. Entre janeiro e fevereiro, a Renascer fez cinco postagens no grupo Febraci - Eu fui salvo por uma internação involuntária, mantido na rede social pela Federação Brasileira de Clínicas Terapêuticas Involuntárias (Febraci) . Buscava captador parceiro.
Essa é uma função comum no submundo das internações, ainda que as clínicas não admitam utilizar esse tipo de serviço em um primeiro contato. Os captadores são pessoas que recebem comissões por internação concretizada. No Nordeste, os valores costumam variar entre R$ 500 e R$ 1 mil. Nos grupos de Facebook sobre tratamento para uso abusivo de álcool e outras drogas, vendem serviços para as clínicas. Uma das postagens da Renascer recebeu cinco telefones de retorno, com DDDs de Pernambuco, Alagoas e São Paulo. Os captadores trabalham publicando banners nas redes sociais com frases como “Problemas com drogas? Podemos te ajudar!”. A premissa é chegar a familiares e amigos de dependentes químicos em grupos na internet e motivá-los a procurar o serviço das clínicas. A oferta parece despretensiosa, mas é uma rede de influência e lucro.
O serviço acontece em duas vias, por meio das redes sociais ou dentro de grupos de Narcóticos Anônimos (NA), segundo dependentes que já trabalharam com isso entrevistados pela reportagem. “Esse serviço surgiu como uma consequência da remoção, pois se a pessoa dissesse que não precisava de resgate, a gente não deixava de encaminhar, mas também não ganhava. Então, as clínicas passaram a oferecer comissão pelo encaminhamento”, explicou João, que depois da própria internação foi integrado ao mercado.
Fabrício Selbmann, do Grupo Recanto, diz que o serviço é mais comum e profissionalizado, com empresas dedicadas a isso, em São Paulo. Lá, o valor cobrado por indicação é 10% do tratamento. “Eu acredito que isso não tenha nenhuma coisa negativa no processo. É uma estrutura de marketing. O que é preciso saber é se as clínicas são boas. Não é uma indicação com comissão. São duas empresas fazendo parceria de negócio”, conta.
A Retruco descobriu vários serviços autônomos nas redes sociais. Entrou em contato com três pessoas, que enviaram fotos de clínicas parceiras e ofereceram descontos e facilidades de pagamento ao iniciar a tratativa com o familiar no Whatsapp. As pessoas são insistentes, pedem para falar com um parente, perguntam a classe social da família e o plano de saúde. No dia seguinte ao primeiro contato, costumam enviar novas mensagens, mas preferem e insistem por ligações.
A reportagem também entrou em contato com oito clínicas para saber o valor das comissões pagas. Algumas delas tentaram despistar, outras confirmaram a prática sem receio. A clínica Há Esperança paga R$ 1 mil. A Renascer afirmou que não trabalha com comissões, embora busque nas redes sociais por captadores. O Centro Terapêutico Nova Aurora paga R$ 500, caso o paciente fique internado no primeiro mês. Todos os contatos foram feitos duas vezes. O Centro Terapêutico Elo se mostrou interessado em ampliar a rede de captadores, mas disse que o valor fechado depende de cada caso.
As conversas públicas nos grupos de Facebook não mencionam os valores. Nas redes sociais, os captadores postam telefones de contatos e até a exposição de algumas situações, como a busca por uma clínica para internação involuntária de um adolescente de 16 anos publicada no grupo Febraci - Eu fui salvo por uma internação involuntária, em 2018. “Usuário de maconha, perfil do rapaz é tranquilo (...) Meu maior problema é o translado de remoção, se alguém puder me dar uma ajuda”, diz a postagem.
Roberto Brunelli, vice-presidente da Febraci, afirmou que não recomenda o trabalho de captação. Para ele, “o captador não vai ter o cuidado de respeitar os direitos dos usuários e familiares”. Contudo, diz a recomendação não tem obrigatoriedade de ser seguida. No grupo que mantém no Facebook, a Febraci não impede a ação dos captadores. “As pessoas instigam a ambição do outro. Todo mundo conhece alguém que precisa de tratamento. E isso incita o profissional que trabalha por dinheiro. Tem gente que nem liga mais qual é o melhor lugar, eles olham o que paga mais. Eu chamo, brincando, de garimpeiros de zumbi”, resume João, agora defensor do método.
O mercado é alimentado por ex-pacientes
João, agora com 43 anos, abriu uma empresa de resgate e captação. A jornada dele é exemplo de muitas. Ao concluir o tratamento, começou a trabalhar em clínicas e chegou a ser gerente de onde foi paciente. Passou por sete instituições como trabalhador, em Pernambuco e outros estados. Até o começo da pandemia, estava há um ano sem usar as substâncias. Vivia espalhando banners na internet em busca de clientes.
Ao ser questionado, João é receoso em mostrar as propagandas que cria. “A empresa é pequena, uma ferramenta do Google Meu Negócio. Tenho um texto que desenvolvi, dizendo que se você tem problemas, podemos ajudar.” O trabalho forte é na abordagem por telefone. Ele tem um catálogo de clínicas parceiras que apresenta ao fazer o que chama de anamnese. Mas João não tem formação em saúde, é desenvolvedor de hardware. O importante é saber se o paciente tem plano de saúde e qual o poder aquisitivo da família. “Eu tenho quatro comunidades, de vários preços. É um trabalho de triagem, de acordo com o que a família pode pagar e o perfil da pessoa.”
Depois de escolher a instituição para cada caso, oferece o resgate. De Petrolina para João Pessoa, cobra R$ 2,5 mil, mas diz que é 40% abaixo da prática do mercado. A equipe dele é toda formada por ex-paciente que concluíram o tratamento e estão em abstinência. O que é cobrado é dividido igual entre todos. O carro é cedido por um terceiro. O serviço é de risco, assume. “Já fui fazer remoção de um cara armado. É um trabalho árduo, eu sempre tento levar conversando. Tenho tido bastante êxito.”
Se houver resistência, João adota táticas. “Fazemos a contenção diante dos pais. Na verdade, peço para a mãe sair, pois a mulher geralmente tem um coração um pouco mais mole”, opina. Se for preciso usar a violência, o que admite acontecer, ele pede a autorização familiar antes. “As pessoas às vezes dizem que vão matar a gente quando sair, mas dois ou três meses depois aparecem chorando para agradecer”, conta.
Antes da pandemia, João estava empolgado com uma nova empreitada, disse que ia largar o resgate para se dedicar a uma clínica. Chegou a enviar para a reportagem informações sobre a unidade, em Petrolina. Da última vez que manteve contato, em maio, pediu divulgação. Em junho, a Retruco tentou saber o status da abertura do serviço. O telefone de João já não pertence a ele, nem a clínica. João recaiu.
Internação involuntária foi ampliada no Brasil, mas dados são desconhecidos
A lei 13.840, sobre condições de atenção aos usuários e financiamento das políticas sobre drogas, sancionada pelo governo Bolsonaro em junho de 2019, ampliou a possibilidade de internação involuntária da pessoa em uso abusivo de álcool e outras substâncias psicoativas. Por outro lado, falta fiscalização e dados abertos sobre o tema no Brasil. O Ministério da Saúde afirma não ter dados sobre quantas internações involuntárias são feitas no país. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) também. A Secretaria de Saúde de Pernambuco (SES-PE) só tem dados sobre internações compulsórias, aquelas solicitadas pela Justiça. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tampouco tem dados de quantas solicitações judiciais foram feitas para a União ou os estados custearem o método.
A única forma de contar é pelas solicitações ao Ministério Público. “Mas quem faz isso de forma errada não vai avisar, senão vai ser fiscalizado”, pondera Fabrício Selbmann, do Recanto. A obscuridade favorece o mercado clandestino das captações e remoções. Especialistas afirmam que a nova política pode provocar uma distorção da dinâmica da saúde pública, já que a internação involuntária deveria ser o último recurso terapêutico. A lei aprovada no ano passado tramitava desde 2013, ainda no governo Dilma Rousseff, e é de autoria do deputado federal Osmar Terra (MDB). Osmar é conhecido por negar a ciência e espalhar desinformação sobre saúde, como mostra levantamento da Aos Fatos.
Pela legislação anterior, a internação sem consentimento do paciente só poderia acontecer por um entendimento familiar e diante da decisão médica. Agora, na ausência de um parente, pode ser solicitada por um servidor público da área da saúde, assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sisnad (com exceção dos servidores na área de segurança pública). “Tem efeito populista vender saúde como internação. Como a lei está posta, você abre para um leque de pessoas a possibilidade de solicitar um recurso de exceção, que você deveria usar o mínimo possível”, afirma a coordenadora-geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília (UnB), Andrea Galassi.
A forma como o Brasil valida o método não condiz com a ciência, avalia Galassi. “Não há um estudo afirmando que esse modelo é mais eficiente do que o ambulatorial. Quando você tem um recurso que deveria ser de exceção como prerrogativa de que a pessoa coloca a vida dela em risco, você cria um mercado de internações, que tem interesses econômicos por trás.” Em 2013, a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) havia emitido nota técnica sobre o Brasil afirmando que “considera inadequada e ineficaz a adoção da internação involuntária ou compulsória como estratégia central para o tratamento da dependência de drogas.”
As clínicas privadas são consideradas estabelecimentos assistenciais de saúde, explica a Agência Brasileira de Vigilância Sanitária (Anvisa). Como tal, devem respeitar as normativas sanitárias RDC Anvisa 50/2002, RDC Anvisa 63/2011, RDC Anvisa 36/2013 e RDC Anvisa 222/2018. Além desses e dos conselhos de classe de cada profissão de saúde, a fiscalização das clínicas cabe ao Ministério Público estadual.
No artigo “A controvérsia em torno da internação involuntária de usuários de crack”, o antropólogo e pesquisador da Unifesp Ygor Delgado Alves mostra que não existe nada sobre os critérios para direcionar o julgamento do profissional médico na internação involuntária. O que acaba ficando à mercê da percepção familiar e facilita as ações clandestinas. Questionada pela reportagem sobre quais são as diretrizes para a ação do psiquiatra nas clínicas de reabilitação, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) recomendou buscar o Conselho Federal de Medicina (CFM), que orientou a procura pela ABP. Até a publicação dessa reportagem, nenhum dos dois órgãos voltou a responder.
“Existe uma esforço pelo pânico em relação à droga, a venda da ideia de que todo uso é abuso, que vai levar à morte. É gerado o risco que justifica a internação. A legislação acaba permitindo a atividade econômica”, explica Alves. “É gerado um fluxo de encaminhamentos onde quem deveria ganhar, que são as pessoas com dependência, não ganham”, explica Andrea Galassi.
*Alguns nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a identidade
Essa reportagem foi financiada pela Fundación Gabo como parte do fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas.