Reportagem: Matheus Rangel
Eleonora Pereira teve pouco menos de um dia entre o enterro do filho e o início de uma luta por justiça que durou cinco anos. O sofrimento nunca se atenuou, mas ela se permitiu descansar novamente apenas depois de ver condenados os dois responsáveis pelo violento assassinato de José Ricardo, aos 24 anos, em uma movimentada avenida da Zona Oeste do Recife em outubro de 2010.
Ele é gay e morreu devido a um traumatismo craniano após ser levado da calçada de casa e espancado a chutes por dois vizinhos. Onze anos depois da sua morte, Eleonora continua usando o verbo no presente. “José Ricardo não era gay, ele é gay onde estiver e vai continuar sendo. Porque não se nasce gay, se é”, afirma a mulher de 56 anos, que anda com fotos do filho no celular para olhar pelo menos algumas vezes por dia e ajudar com a saudade.
Ela criou os três filhos - Rafael, Rubens e Ricardo, respectivamente - ao lado do ex-marido em uma casa simples no bairro de Jardim São Paulo, periferia da capital pernambucana, e dedica a vida à luta pela garantia dos Direitos Humanos em presídios do estado. Enfermeira por formação, decidiu mudar de profissão depois de testemunhar a violação de direitos básicos em um hospital onde trabalhou. “Via as pessoas sem nenhuma dignidade, com direitos negados. Naquela época, final dos anos 70, a gente nem sabia que o que tava fazendo se chamava Direitos Humanos”.
Tragicamente, a sua luta foi uma das motivações do crime que ocasionou na morte de Ricardo. Os dois culpados pelo assassinato moravam a poucas ruas da família e faziam parte de um grupo para recuperação de menores infratores do bairro, criado por Eleonora e organizado com a ajuda do filho. A outra motivação foi homofobia, de acordo com a Justiça.
W., de 20 anos, e C.*, 21, eram conhecidos por Eleonora desde crianças. Era comum que fizessem lanches na sua casa e foi ela a responsável por ajudá-los a encontrar os cursos profissionalizantes que estavam cursando na época do crime. Foi ela também quem os ajudou a sair da prisão nas primeiras vezes em que foram detidos pela polícia, acusados de assalto.
A morte, que era para ter sido “apenas” um espancamento, ocorreu como forma de vingança por Eleonora repreender um dos jovens após serem flagrados cometendo mais um assalto. Em uma das reuniões do grupo, alertou: “O tanto que eu pedi pra vocês não reincidirem. Eu não vou mais lhe ajudar, eu lavo minhas mãos”. Na decisão em retaliar Ricardo, pesou também a sua homossexualidade, considerada uma fragilidade pelos seus algozes.
“Uma mãe conhece o filho até pela manchinha do pé”
O crime estava planejado para ocorrer no dia 13 de outubro de 2010, quando os dois condenados e mais uma terceira pessoa, não identificada pelas autoridades, tentaram atrair a vítima para uma escola pública da região. O plano não deu certo porque José Ricardo estava no aniversário da sobrinha e decidiu ficar na festa. Os criminosos carregavam um rato, que seria usado para torturá-lo.
A última vez que mãe e filho conversaram foi no dia seguinte, quinta-feira, 14 de outubro, quando estavam sentados na calçada de casa perto das 22h. O local era o preferido dos dois na residência, onde costumavam comentar sobre o dia e descansar. Depois de sair para buscar um livro na sala de estar, Eleonora já não encontrou mais Ricardo no mesmo lugar.
Desconfiou do sumiço e passou a madrugada contactando amigos e conhecidos em busca do paradeiro do filho, que não costumava sair sem celular e documentos - “Ele tinha medo de ser abordado pela polícia e não poder se identificar, a gente sabe como a polícia é”.
Depois de uma noite mal dormida, foi trabalhar angustiada na sexta. Passou o dia à espera de notícias, mas o telefone não tocou. Saiu mais cedo do trabalho e não voltou para casa até as 2h da madrugada procurando pelo filho, sem sucesso. A angústia se agravou no sábado de manhã, quando chegou a visitar W. após um vizinho apontar que o havia visto com Ricardo na noite do desaparecimento.
“Encontrei ele [W.] num colchão na sala. Perguntei onde estava Ricardo, se eles tinham se encontrado, onde tinham se visto por último. Mas ele negou que soubesse, disse que não sabia de nada”, lembra Eleonora, então já há quase dois dias no escuro. Às 16h do mesmo dia, soube que um rapaz parecido com seu filho havia sido espancado nas proximidades do bairro.
Depois de uma insistente busca pelos principais hospitais públicos da região, só achou o filho depois de uma segunda ronda no Hospital da Restauração. Enquanto aguardava por um funcionário do serviço social, esperava o pior: “Fiquei sentada, quietinha. Sabe quando você quer voltar pro útero da sua mãe, toda encolhida, com medo de sentir uma dor maior?”.
Foi levada ao CTI e de longe viu o pé de Ricardo para fora de um dos leitos. Descobriu ao ler em seu prontuário que o filho tinha um traumatismo craniano e estava em coma. “Uma mãe conhece o filho até pela manchinha do pé. Acho que nem sei se ser enfermeira e mãe é uma coisa boa ou ruim. Quando peguei o prontuário dele, olhei pra ele, percebi logo a baixa na cabeça”, recorda. Na testa, os detalhes do solado de um tênis estampavam a violência dos chutes que levou. Mesmo com o filho ainda vivo, Eleonora saiu do hospital para começar a preparar o velório.
Ele faleceu na manhã seguinte.
“Eu vou ser perna, vou ser voz, vou ser braço”
“Meu filho não tem mais perna, não tem mais braço, não tem mais voz e não enxerga. Eu vou ser perna, vou ser voz, vou ser braço, vou ser tudo pro meu filho”. Essas foram as primeiras palavras que ressoaram na cabeça de Eleonora quando recebeu a ligação do serviço social do hospital na manhã de domingo. Sentiu as lágrimas caírem, mas se forçou a funcionar em “modo automático” até o enterro, ao meio-dia da segunda-feira.
“No nascimento, a gente escolhe o berço. Queremos o melhor berço, o mais bonito. A gente escolhe a roupinha, o melhor lençol. A gente pinta um quarto pra botar esse bercinho pra ficar bonito. Vai atrás da certidão de nascimento. Já na morte, precisei escolher caixão, as flores pra cobrir o corpo dele, o atestado de óbito, a cor do túmulo. Enquanto mãe, a gente precisa entender que nossos filhos são empréstimos de Deus. No dia que Deus disser ‘eu vim buscar’, ele leva”, reflete.
A derradeira despedida veio no enterro, no dia seguinte. Logo antes dos funcionários do cemitério fecharem o caixão, Eleonora se debruçou sobre o filho para fazer uma promessa: “Sua mãe vai buscar quem fez isso com você. Nem que seja no inferno, mas ela vai”.
Foi para a casa e tentou descansar. Na terça-feira, escolheu ir sozinha à delegacia. Não queria “fazer alarde” na polícia por conta da sua atuação com Direitos Humanos. “Eu quero saber quem matou meu filho”, exigiu aos policiais. Foi apenas duas semanas depois do crime que Eleonora ficou sabendo quem eram os responsáveis. A informação chegou enquanto estava trabalhando em um presídio, por meio de um detento que queria ajudá-la.
“A mãe de um deles trabalhava comigo. Ela se abaixou perto de mim e disse: ‘quero que você me fale a verdade. Estão dizendo que foi C. que matou Ricardo. Se for envolvimento com droga ou assalto eu defendo, mas se for morte eu não vou defender’. Eu disse que não sei, mas já sabia, porém só quem vai dizer é o juiz. ‘O seu filho é seu filho, se o seu filho estiver no inferno com a labareda, diga pra ele filho eu estou aqui’, falei. Era uma forma de preparar ela. ‘E não se preocupe, jamais vou culpar uma mãe pelo erro de um filho’”. W. e C. foram chamados para depor e posteriormente presos alguns meses depois.
Eleonora diz ter acompanhado cada detalhe da investigação e escutado cada depoimento. Mudou-se para um apartamento perto do fórum, para onde ia andando acompanhar os desdobramentos do caso. Em vez de usar o elevador para subir as dezenas de degraus do imponente prédio, escolhia as escadas de tanta ansiedade.
Tentou - e conseguiu - cumprir a promessa que fez ao filho depois de quase cinco anos, sendo um ano e três meses de cansativas e desgastantes investigações, entre idas semanais à polícia e ao fórum. Todo esse esforço lhe custou um infarto e muitos quilos a menos.
“Tudo isso eu fiz, mas muitas mães não fazem. Muitos gays morrem sob um processo de rejeição e essas mães não têm a coragem de ir falar com o juiz ou não têm acesso a informações. Meu filho era tão precioso pra mim que fui até o final. Fui ouvir até os depoimentos, um por um. Acompanhei ponto a ponto. Depois de cinco anos correndo atrás, finalmente marcaram a data do júri: 17 de maio de 2015, Dia Internacional do Combate à Homofobia”, diz.
Quando o juiz anunciou a sentença - 18 anos de regime fechado para cada um - Eleonora segurava uma bandeira do arco-íris. Só se permitiu chamá-los de assassinos depois do martelo batido. Mesmo sabendo quem eram os criminosos desde o começo, nunca ousou chamá-los de assassinos antes da condenação oficial. Para ela, justiça por conta própria nunca foi uma possibilidade.
“Aniversário e dia das mães eu vou num cemitério e vejo só uma foto. Eu não tenho as mãos sujas de sangue, mas garanti o direito das mães deles de poder abraçar eles, ir visitar no presídio, fazer o almoço dia de domingo e comer com eles. Eu não escuto mais a voz do meu filho, não sinto mais o cheiro dele, mas não deixei o ódio tomar conta do meu coração. A justiça não é só a de Deus, tem a da terra também. Mas eu fiz justiça”, reflete.
Eleonora não quer ser lembrada como uma mãe que perdeu o filho, mas uma mãe que lutou por justiça. “Quando você não tem vínculo [com os assassinos] já é difícil, mas eu estava lá condenando meus educandos. Doeu, mas eu tinha que fazer isso”, conta ela, que segue trabalhando com menores infratores, mas evita frequentar o mesmo presídio onde C. e W. estão detidos. “Só o amor incondicional me deu essa força”.
*Os nomes dos culpados pelo crime foram abreviados para preservar as suas identidades.
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