Por Amanda Borba
Uma crônica de luto
Este ano foi especialmente difícil. Não há outra palavra, pois não consigo, a essa altura de 2020, perdoá-lo. Muitas pessoas sofreram e seguem sofrendo. São dores de morte, dores de luto e dores sem nome – ainda. São vidas sem nome que se foram e nomes sem vida que sobrevivem. Por isso mesmo, foi um ano particularmente rico para mim, que me dedico a pesquisar temas que margeiam o sofrimento. Mas por me desafiar como pesquisadora, 2020 me esgota como ser humano.
A pandemia do coronavírus, honestamente, não me surpreendeu. Na realidade, não vejo como pode ter surpreendido tantas pessoas que já viviam no mundo dos surtos da Gripe Aviária, do Zika vírus, Ebola, Sars, Mers etc. e de tantos alertas sobre como o nosso planeta está doente. Mas o que definitivamente não havia como estar preparado era para estar vivo em um mundo de tantas mortes – são mais de 1,4 milhão de óbitos por Covid-19 no mundo. Aprender a seguir a vida sabendo do luto de tantas famílias tem sido, sem dúvida, um grande desafio.
Eu não me canso de ler testemunhos de vítimas da pandemia, especialmente de pessoas que perderam seus entes queridos. E esse movimento é desgastante, mas necessário para mim. Tenho feito um trabalho curioso de costurar essas vidas na minha. Porque isso me faz lembrar que estamos mesmo todos imbrincados em uma única e grande história. É o meu jeito de – ingenuamente, talvez – enlutar as vidas não enlutáveis de que fala Judith Butler; essas vidas que foram deixadas morrer. Talvez seja uma forma de velar todos esses números sem rosto: ler o máximo de histórias que eu conseguir para tentar alcançar aquilo que nenhum veículo de comunicação tem conseguido exprimir: a ausência única, insubstituível e irrepetível de cada vida que se vai.
Em abril deste ano, a Folha de S. Paulo publicou uma lista de alguns dos brasileiros que morreram, até então, em decorrência da Covid-19. Na breve apresentação dessas pessoas, constavam as atuações profissionais de cada um e alguns dos feitos que as tornariam, nesta sociedade neoliberal, notáveis e dignas de enlutamento. Pois, para lamentar a morte, parece necessário estabelecer de que vida se está falando. Parece necessário investir de sentido a existência de um ser humano para que ela seja passível de luto.
Entretanto, há uma outra maneira de pensar a perda humana. E nesta maneira – que é também como entendo e sinto a morte e seu lugar no mundo dos vivos –, o luto implica um sentimento de perda também de si naqueles que ficam. Implica se entender novamente no mundo sem uma parte de si, que se foi, e aceitar que essa perda o transformará necessariamente. Quando alguém que tivemos morre, acontece um movimento de reorganização interior em nós, o que Butler vai resumir muito bem na seguinte pergunta: “Quem sou eu sem você?”.
A morte constrange e machuca justamente porque ela torna evidente os laços que nos unem e que não somos “eu” sem o Outro. Esses laços não têm relação com atributos técnicos, profissionais ou com um ranking de bom comportamento e, muitas vezes – talvez sempre – isso se perca nesses relatos de vida e morte no jornalismo. Talvez esses vínculos tenham mais a ver com um abraço, um afeto trocado, uma vida compartilhada, independentemente de como esta tenha sido. Provavelmente quem viveu/vive o luto da morte de Adipe Miguel Junior, de 69 anos, que consta na listagem da Folha, não o fez/faz porque ele era um engenheiro mecânico que abriu uma editora e produzia publicações para a Igreja. Ou não apenas por isso. Talvez tenha sido apenas por um toque no ombro que a morte dele seja insustentável para alguém. Hoje, temos um mundo sem Adipe Miguel para aqueles que vivem sua ausência.
E o luto não se restringe ao âmbito do privado, já que há um senso de comunidade que o atravessa e que nos é colocado à vista quando a morte acontece. E há um aspecto disso que me parece particularmente interessante de refletir e que se contrapõe ao individualismo, característico do nosso tempo: a identificação com o sofrimento do Outro. A sensação de que podemos entender e alcançar aquela dor. A morte é, a meu ver, um dos poucos eventos que nos permite encontrarmos uns aos outros.
Então, como gente, coloco-me na posição de sentir essas perdas como se fosse um pouco minhas, pois, na verdade, são. E se há quem não comungue do sentimento de comunidade global, é preciso lembrar que somos todos corresponsáveis, se não pelo surgimento do vírus, pela disseminação deste, pela ausência de políticas públicas que olhem para os mais vulneráveis, pela reparação histórica que nunca veio, pelas pessoas que não puderam se dar ao luxo do isolamento social e por todas as vidas precárias, estas que são, a todo momento, as mais atingidas.
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