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Nazismo e Brasil 2020: o fundo do poço está em alta

Atualizado: 25 de mar. de 2020


Foto: Reprodução/Redes sociais



Alunos do ensino médio de uma escola recifense de elite fazendo saudações nazistas; diversos casos pelo Brasil de pessoas usando braçadeiras com símbolos de suásticas em espaços públicos; secretário especial da cultura, escolhido pelo presidente da república do Brasil, usando expressões propositalmente semelhantes ao do ministro da propaganda da Alemanha nazista. Chegou 2020. Nem seu Ricardo, um velhinho armamentista calvo de camisa social azul bem passadinha cheio de fé que aposta sem vitórias há anos todo santo dia num jogo do bicho clandestino perto da Vila Olímpica de Rio Doce, em Olinda, poderia creditar o acaso por esta sequência de ocorrências. Estamos vivendo em um espaço-tempo onde a compaixão é criminalizada e a violência é sinônimo de bom humor. Mais gritante do que o por quê das derrotas insaciáveis de seu Ricardo, a pergunta é: como chegamos nisso?

Para os ratos, o fim do poço é a saída, a segurança contra o predador do mundo externo. Na superfície há outros animais, com mais qualificações e desempenho. Subir, então, seria condenar-se a derrota. Todavia, quem manda nas cartas são os ratos e, por hoje, por esses próximos meses e anos, o mundo está sendo posto de cabeça para baixo e, assim, o fim do poço está em alta.

Ódio

O psicanalista Antonio Alberto Semi, em "Cultura e odio: un punto di vista psicoanalitico", questiona a existência particular do ódio. “Particular, indiferenciado ou impessoal, que torna um objeto adequado para manifestá-la ou se, por exemplo, é a existência de diferentes culturas que provoca explosões de ódio. Ou você ainda pode se perguntar se não é uma expressão de ódio característica de toda cultura, da própria cultura”, escreve.

Confuso, né? Também achei. Vamos para alguns exemplos:

Um vídeo de um grupo de policiais de Santa Catarina quebrando a perna de uma mulher algemada viralizou no Twitter no dia 10 de março de 2020. Nos comentários, em uma corrida de igual para igual, daquelas que é preciso olhar várias vezes no replay para ver quem ganhou, alguns criticam a atitude dos policiais e outros dão risadas do sofrimento da mulher.

Seu Ricardo não pôde comentar este caso pois teve um imprevisto semanas antes. Se auto afirmando culto em cada expressão facial e tonalidade vocal, comentou que achou necessária a ação truculenta da PM em dezembro de 2019 que culminou em diversas mortes em um baile funk de Paraisópolis, em São Paulo. “Não sou violento, mas tenho consciência de que a violência não se combate com compaixão”, pontuou, com a cabeça baixa, com os olhos fixos em um grupo do Whatsapp que não parava de notificar zumbidinhos.


Quando, em 18 de abril de 1965, Theodor Adorno realizou a sua palestra "Educação após Auschwitz", disse, em resumo, que, se não tivéssemos cuidado, a estupidez e o ódio natural dos humanos nos direcionariam para um futuro pior do que aquele passado. "A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se não quisermos cair presas da retórica idealista”, disse num trecho.


A fala padrão traseira de caminhão do George Santayana, “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”, seria até mais direta do que a do Adorno, mas a ausência de completude territorial e o resquício de esperança na humanidade que Santayana tinha fez com que a sua fala evaporasse com o tempo. Os alunos são de um ensino médio de qualidade, o ex-secretário tem formação superior e exerceu um cargo público de âmbito nacional. Não só conhecem o passado cruel, como há algo de satisfatório em tê-lo consigo.


“Zoeira, pô, kkkk”


Nos anos seguintes a um programa de TV que liderou a audiência nacional colocando mulheres seminuas em situações constrangedoras e fazendo piadas com nanismo e xenofobia, muitos se esquecem de que “a zoeira” vem tendo um papel fundamental na institucionalização e propagação do ódio.


O fato disso tudo ser contemporâneo da "mamadeira de piroca" e das defesas de que a terra é plana, faz com que cheguemos no que Renê Braga defende em "A indústria das fake news e o discurso de ódio" (2018), que, em resumo, trata da unificação natural das estupidezes homônimas ao título da obra, um amor à primeira vista e eterno.


Voltemos então pro primeiro parágrafo desse texto, no acontecido do grupo de 11 alunos com idades entre 16 e 17 anos, do Colégio Santa Maria, Zona Sul do Recife. Era 4 de março de 2020 e a viralização na internet aconteceu nos dias seguintes. Entre os comentários da reportagem do G1 sobre o caso, os com mais curtidas foram os seguintes:


“Eles são jovens, menores de idade, nem sabem o que estão fazendo. Vamos parar de fazer uma tempestade em um copo d'água", escrito pelo pseudônimo Mercury Sedan;


"Isso é só zoeira jornal burro", assinando o pseudônimo Humberto;


“Cadê a liberdade de expressão? Não é um dos direitos da nossa constituição? Me mostre no código penal que é crime fazer esse gesto. Tudo falso moralista", disse o pseudônimo Salazar Oliveira.


Sim, Salazar, é crime. Há a Lei 7.716/89, que prevê no seu artigo 20: Crime de Divulgação do Nazismo (O artigo 140, § 3º, do Código Penal, estabelece a pena de 2 a 5 anos e multa para este crime).


Nas brechas das palavras

Adolf Hitler é indiscutivelmente um dos mais famosos da história mundial do ódio, elegível facilmente como um patrono da crueldade, então, com exceção das “zoeiras kkkk” e da “liberdade de expressão” dos lunatícos, não deveria ser normal bater no peito e dizer que concilia com suas ideias, certo? Sim, quem concorda com ele concorda que não concorda com ele. Seu Ricardo mesmo, certo dia de janeiro de 2020, enquanto comia num self-service pouco popular com os olhos vidrados numa TV Samsung 42 polegadas pregada na parede notificando um movimento nazista em Santa Catarina, disse: “quem defende essas coisas é bandido, chega me dá um ódio, dá vontade é de matar na bala”.

Também em janeiro, quando estive em Itapetim-PE, no sertão do Pajeú de Pernambuco, notei que havia suásticas desenhadas na praça principal da cidade, gritantes aos olhos. Tirei fotos e, em seguida, cobri os símbolos com tinta branca. Joguei as fotos nas redes sociais e entre uns e outros comentários, apareceram alguns que me xingaram por expor aquilo.

Mesmo consciente da ausência de correntes hindus nos sertões do Nordeste, uns diziam “você apagou um símbolo religioso, cadê o respeito?”’ outros simplesmente “já tinha visto e não me incomodou, isso deve ter sido uma brincadeira de meninos, oxe”.

As palavras migalhentas que se posicionam timidamente (ou gritantemente) a favor de um discurso de ódio e/ou tem finalidade de desqualificar uma discussão sobre violência absoluta vão ganhando uma densidade que, mais cedo ou mais tarde, não dará mais para esconder debaixo do pano e que poderá ocasionar revés até para o próprio autor.


É uma pena que eu nunca pude conversar isso com seu Ricardo, nome fictício que usei neste texto para preservar a identidade deste personagem, pois nossas conversas de outrora nunca se prolongavam e, atualmente, não dá também, pois ele foi baleado dentro de casa e faleceu mês passado, em fevereiro de 2020. Em depoimento à polícia e notificado por alguns jornais locais, a família disse que o disparo aconteceu acidentalmente quando um parente muito jovem manuseava a arma da vítima.

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