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No Recife, investimentos na Primeira Infância não incluem os profissionais da área

Produção e reportagem por Eduarda Nunes (@1eduardanuness)

“Quando eu me vi dentro de uma sala de aula com 20 crianças de 2 a 3 anos de idade, você imagina a situação... Eu passei por momentos muito complicados, assim como muitos colegas meus também passaram”, lembra Marcos Aurélio, Auxiliar de Desenvolvimento Infantil (ADI) na rede municipal de ensino do Recife. Ele atua na profissão há 10 anos e hoje é diretor do Sindicato dos Servidores Municipais do Recife, o SINDSEPRE, mas quando chegou na primeira creche em que trabalhou ele tinha acabado de se tornar ex-eletricista. A história de Marcão é o retrato da atual situação da Educação Infantil na cidade do Recife. Apesar de estar ganhando cada vez mais prioridade da gestão executiva, a educação na Primeira Infância ainda enfrenta problemas graves: profissionais que atuam como auxiliares de desenvolvimento infantil, função exclusiva e essencial na Educação Infantil, têm suas demandas e contribuições pouco consideradas ou ignoradas e temem retrocesso.

A falta de exigência de formação mínima em educação fez Marcão, como é conhecido, achar que poderia dar conta do trabalho com base no que vive com seus filhos e sobrinhos. Mas se enganou, na primeira semana ligou para o ex-chefe perguntando se sua vaga de eletricista havia sido preenchida.

As publicações do Diário Oficial e no site oficial da Prefeitura indicam que a cidade se prepara para oferecer o primeiro Centro de Referência da Primeira Infância, dobrar a quantidade de vagas nas creches e pré-escolas e promover ações intersetoriais para garantir uma primeira infância de mais qualidade para as crianças e suas famílias. Ao mesmo tempo em que esses marcos acontecem, os sindicatos dos profissionais da área indicam menor diálogo com a gestão municipal.

Construindo uma nova Primeira Infância no Recife

O déficit no acesso à Educação Infantil não é uma particularidade da capital pernambucana. É uma questão que atinge famílias por todo o país. Mas recentemente algumas medidas indicam maior investimento da Prefeitura do Recife na área.

Em 2018, por exemplo, foi instituído o Marco Legal da Primeira Infância na cidade do Recife, documento que guia a proposição e execução de políticas públicas intersetoriais que impactam a vida das crianças nos seus primeiros anos de vida - assim como suas famílias.

A Lei nº 18.491/2018 institui princípios, diretrizes, instrumentos e competências as secretarias das áreas que atravessam o cotidiano das famílias que tutelam uma criança. Além da Secretaria de Educação, as secretarias da Mulher, de Assistência Social, Saúde, Turismo, Cultura, Mobilidade Urbana e Segurança Pública recebem direcionamentos nesse sentido de contribuição com o desenvolvimento infantil de forma integral.

O documento institui também a criação de comitês que reúnem os gestores públicos, os técnicos das áreas citadas e organizações da sociedade civil convidadas para a consolidação da Política Municipal Integrada pela Primeira Infância.

Lançamento do novo equipamento disponível no Compaz Governador Miguel Arraes. (Foto: Rodolfo Loepert/PCR) Um dos instrumentos para a implementação desse Marco Legal é o Plano Municipal da Primeira Infância. Publicado em 2020 e dando sequência à incidência política no melhoramento do cotidiano das crianças em seus anos iniciais, o Plano foi precedido pela criação da Secretaria Executiva para a Primeira Infância, estrategicamente vinculada à Secretaria de Planejamento e Gestão – SEPLAG. O órgão, em consonância com o Conselho Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente do Recife – COMDICA, convocou diversos atores para a elaboração desse que é o Plano Decenal para a Primeira Infância e vale até 2030.

Em um ano que começou com a pandemia do Coronavírus e ainda contou com eleições municipais, Recife deu um passo à frente no compromisso, principalmente, com as crianças e as mães que dependem das creches e pré-escolas municipais.

O documento traz dados muito importantes sobre a realidade sociopolítica das crianças recifenses a partir de diagnósticos elaborados, majoritariamente, a partir da base de dados dos sistemas de informações sobre mortalidade e sistema de informação sobre nascidos vivos e o CadÚnico, cadastro para programas sociais do Governo Federal.

Além disso, o Plano Municipal da Primeira Infância também contou as escutas públicas de profissionais e estudantes da Educação Infantil do Recife e também de toda a sociedade civil. A partir da plataforma Colab (canal virtual), mais de duas mil colaborações foram levadas em consideração. E mais de 40 mil crianças foram ouvidas, de distintas formas, durante esse processo também, mas a partir de outras metodologias de coleta de informações.

"Os desenhos, as conversas e a dramatização foram recursos utilizados pelas professoras da rede, e Auxiliares de Desenvolvimento da Educação Infantil – ADI’s dessas crianças, que escreveram o cotidiano de suas famílias e suas comunidades e, o mais importante, apontaram os desejos a partir de suas carências enquanto demandatários de necessidades". Ana Maria de Farias Lira, presidente do Conselho Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente do Recife – COMDICA, na apresentação do Plano Municipal da Primeira Infância.

Sendo o Recife a capital brasileira mais desigual do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a análise das informações contidas na base de dados conseguiu delinear a relevância que a pobreza tem na infância que é vivida pelos bairros do Recife. São mais de 55 mil crianças em situação de vulnerabilidade social.

A atual gestão da Prefeitura assume a cidade pouco tempo depois que o plano foi publicado e investe na Educação Infantil enquanto área que pretende deixar a sua marca na história. Tomando como base o documento, que afirma que a Primeira Infância deve ser a maior prioridade da cidade, uma das metas é dobrar a quantidade de vagas nas creches e pré-escolas.

Numa busca na plataforma Querido Diario, que foi criada com o intuito de facilitar o acesso aos Diários Oficiais das cidades brasileiras, é possível encontrar 281 resultados para a palavra-chave Primeira Infância desde 2021, início da atual prefeitura atual. 285 para Educação Infantil. Nessa pesquisa é possível acompanhar algumas ações como as do programa Infância na Creche, por exemplo, que é atualizado com certa frequência informando a quantidade de novas vagas abertas.

É possível acompanhar também de que forma as secretarias que estão citadas no Marco Legal da Primeira Infância têm trabalhado para garantir o desenvolvimento integral da infância na cidade e o edital para parcerias com instituições sem fins lucrativos como reforço nessa missão.

Ainda segundo o Querido Diario, nos oito anos da gestão anterior à que está vigente a educação dos primeiros anos soma 1716 resultados. O então prefeito Geraldo Júlio (PSB/PE) foi o gestor responsável por instituir o Marco Legal e o Plano Municipal da Primeira Infância e todo o processo de pesquisa e consultas que antecederam a escrita dos documentos.

Na plataforma, o Diário Oficial do Recife está disponível em formato aberto, ou seja, é possível encontrar com mais facilidade os documentos de acordo com os temas que estão sendo pesquisados. A partir disso, fica mais simples identificar os documentos originais dos documentos citados que servem como um norte para a implementação de novas políticas para a Primeira Infância na cidade e admite e oficializa a importância da valorização do corpo profissional que acompanha as crianças em seus desenvolvimentos pessoais. Entretanto, a valorização desses profissionais parece ficar só no papel.

Pesquisa sobre Primeira Infância, referente ao município de Recife, na plataforma do Querido Diário.

Na prática, a teoria é outra

A vivência de Marcos Aurélio como Auxiliar de Desenvolvimento Infantil (ADI) na rede municipal de ensino do Recife o impulsionou a cursar a licenciatura em História e hoje se tornar exemplo para a necessidade da exigência de formação mínima em educação para exercer a função de ADI. Além do reconhecimento pedagógico, a categoria também delineia a importância das formações continuadas. Essa foi uma das pautas levantadas pelos próprios profissionais para se manterem qualificados no exercício de suas funções. Marcão conta que desde o início da atual gestão do Prefeito João Campos os ADIs não passaram por nenhuma formação e seguem aguardando. A falta de valorização profissional também preocupa Antônio Terto, que é ADI na rede municipal do Recife desde 2016. Ele passou no último concurso que foi aberto para a área em 2014 e hoje faz parte da comissão transitória da Assadir, Associação de Auxiliares de Desenvolvimento Infantil do Recife. Essa é uma instituição que, junto com o Sindicato Municipal dos Profissionais de Ensino da Rede Oficial do Recife (Simpere) e Sindicato dos Servidores Municipais do Recife (Sindsepre), tenta um acordo com a Prefeitura do Recife no tocante à valorização dos profissionais da educação infantil permanentemente.


Conferência Municipal de Educação. (Foto: Cortesia)

O que acontece é que a categoria dos ADIs sofre uma profunda falta de respeito pela função que exercem. Sendo os profissionais que passam mais tempo durante o dia com as crianças nas creches e pré-escolas, estão há 8 anos sem concurso para renovação do quadro de servidores e persistindo na inclusão do reconhecimento pedagógico como um dos requisitos para que a vaga seja preenchida.

Essa função foi criada em 2005 e exigia a formação do magistério completo para ser executada e em 2006 essa obrigatoriedade é dispensada e desde então a briga é pela retomada. “É simples de entender: para você atuar em sala de aula você tem que ter uma formação mínima em Educação'', afirma Antonio Terto, o auxiliar de desenvolvimento infantil citado no início da matéria. “Tem as questões que vão beneficiar os funcionários, mas principalmente as crianças. A nossa luta é pelo direito da criança’, finaliza.

O ADI contou em entrevista à Retruco que não vê diálogo nem avanços na atual gestão da Prefeitura, muito pelo contrário. Após o retorno das aulas após a pandemia, Terto relata uma sensação de retrocesso. Mesmo com toda a discussão que há anos se arrasta entre a Prefeitura e os funcionários, o concurso que é solicitado perde para seleções simplificadas e contratos irregulares de auxiliares de desenvolvimento.

Desse modo, além de seguir ferindo a necessidade de formação mínima em educação e manter as crianças aos cuidados de pessoas que não necessariamente têm qualificação para a função, mantém também funcionários que ficam vulneráveis à Prefeitura. Terto acredita que isso é "de certa forma um ataque à categoria porque são funcionários que não têm a estabilidade que um concursado tem de ir à luta, de cobrar, de fazer as ações que são necessárias."

O reconhecimento e a valorização das funções dos auxiliares de desenvolvimento infantil é uma das bases dos documentos citados no início da reportagem. E mesmo assim esses profissionais seguem sendo negligenciados. ‘‘O documento é positivo, mas ele deve ser cumprido, que é o principal, né? É o que a gente não vê”, afirma Terto. Marcos Aurélio, ADI e diretor do SINDSEPRE, pondera que, embora essa seja uma categoria unida e que reivindica bastante que a Secretaria de Educação e a Prefeitura estejam atentos, existe um receio de perder o que já foi conquistado até agora: “eu não vejo empenho para a concretização dessas conquistas”, afirma o auxiliar, reiterando a percepção de Antônio Terto.

“Tão aumentando sala, tão construindo novas unidades. E os recursos humanos?”


Com a meta de dobrar a quantidade de vagas nas creches até o fim dessa gestão e oferecer mais 700 vagas, também foi preciso agir quanto à contratação de profissionais para suprir a demanda de novas crianças na rede. O último concurso para contratação de auxiliares do desenvolvimento infantil e de educação especial aconteceu em 2014 e o cadastro de reserva já não dava mais conta.

Mesmo com a forte reivindicação dos sindicatos para a chamada de novos concursos, incluindo o reconhecimento pedagógico como requisito para contratação e sendo essa uma das metas do Plano Municipal da Primeira Infância, a Prefeitura do Recife lançou um edital de seleção simplificada em março de 2022. São 200 vagas para ADIs e 200 para Agentes De Apoio ao Desenvolvimento Escolar Especial (AADEE) para nível médio que estão em andamento.

Lembrando do seu início de carreira na Educação Infantil, Marcão chega a considerar que é até falta de responsabilidade "você pegar uma pessoa crua e jogar num lugar tão fundamental, tão importante”. Os novos profissionais que têm chegado à rede através de contratos temporários e irregulares preocupam os ADIs que trabalham lá há mais tempo. Além de questões operacionais no cuidado das crianças, existem as questões políticas que mantêm esses novos profissionais distantes do espaço sindical.

Foto: Cortesia

Desse modo, uma outra frente de luta desses auxiliares também fica descoberta, que é a de garantir que as creches e pré-escolas não se tornem espaços de assistencialismo somente. O reconhecimento pedagógico também garante que, além das famílias, a criança seja atendida na totalidade do que a instituição se propõe a ser: um ambiente de cuidado e aprendizado. E seguir contratando pessoas não qualificadas e preparadas para as creches, não investir na formação continuada e seguir desrespeitando ou negligenciando a atuação desses profissionais, não soma pontos para a melhoria da vivência da Primeira Infância das crianças no Recife.

O investimento na abertura de novas vagas para as crianças e na construção de documentos legais que viabilizem avanços importantes na área precisa dialogar com as categorias de profissionais que estão organizadas com o objetivo de melhorar o ambiente escolar como um todo. A Educação Infantil não acontece deslocada do que está ao redor, os estudantes precisam de estruturas físicas e humanas que garantam que suas infâncias impactem positivamente seus futuros escolares, pessoais e políticos.


Esta reportagem foi produzida com apoio da Open Knowledge Brasil e contou com o uso do Querido Diário, ferramenta de inovação cívica criada para abrir e integrar os diários oficiais. A iniciativa reúne coletivos e agências de jornalismo independentes de diferentes regiões do Brasil para difundir a importância das informações públicas contidas nesse tipo de publicação.

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