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“Nosso remédio é Deus”: o messianismo da cura nas comunidades terapêuticas

Atualizado: 15 de out. de 2020

Ilustração: Quihoma Isaac (@quihomaillustration)

Não houve tempo para se despedir. Somente com a roupa do corpo e uma mochila nas costas, cheia das guloseimas que venderia em ônibus no centro da cidade de Recife, Bruno Gonçalves, 27 anos, partiu, ainda sob efeito do álcool e do crack, para a Instituição Manassés, na cidade de Jaboatão dos Guararapes. No dia seguinte, embarcou num avião para a Bahia. A instituição exige que os internos mudem de estado para receber tratamento. Sem notícias, a mãe de Bruno temeu a morte do caçula. Três dias depois, o telefone de Dona Maria tocou. O filho não estava morto, mas em outra etapa de uma jornada em busca de salvação.


Quando tomam a decisão de ir para comunidades terapêuticas, a depender da política da casa, internos como Bruno rapidamente são transferidos para outros estados. Deixam para trás família e amigos, na tentativa de reescrever a própria história. Migram de casa e também de si. A ruptura com a vida passada faz parte de um protocolo em busca da abstinência total, objetivo das propostas de tratamento para o uso abusivo de álcool e outras drogas das comunidades terapêuticas.


É assim na Instituição Social Manassés, entidade para onde Bruno foi. Fundada em 1997, por Marcos Antonio Novais, hoje ex-deputado estadual na Bahia, conhecido como Pastor Manassés, a CT afirma no próprio site que já atendeu e tratou 15 mil pessoas, “que encontraram na instituição um novo começo”. Com 21 unidades espalhadas pelo Brasil, a Manassés se fundamenta em três pilares: o tratamento pela religião, a migração dos internos para estados diferentes de onde viviam e a venda de objetos em ônibus dos centros urbanos.


A CT promete a “verdadeira libertação” por meio da palavra de Deus, considerada o diferencial da abordagem terapêutica para o dono pastor Manassés. O tratamento tem duração de aproximadamente nove meses, é composto por três fases e “tem como principal objetivo conscientizar, disciplinar e reabilitar os residentes”, explica o site. A unidade se orgulha de não usar medicamentos. Pode ser considerada uma vitrine de um movimento que só cresce no Brasil.


Existentes no país desde os anos de 1960, as comunidades terapêuticas passaram, na última década, a receber financiamento sistemático do Governo Federal. Desde o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack, publicado pelo governo Dilma Rousseff, em 2010, e da inclusão delas na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), em 2011, são lançados editais para destinação de verba pública a essas entidades. No Nordeste, há 300 CTs segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Um levantamento realizado pela Agência Retruco, a partir de dados solicitados via Lei de Acesso à Informação (LAI), revela que entre os anos de 2013 e 2018 foram pagos R$ 60 milhões a 65 entidades na região.


O governo Jair Bolsonaro, que mantém relação estreita com a bancada evangélica no Congresso, desde 2019 aposta em ampliar as vagas e a transferência de dinheiro público para as CTs, das quais mais de 60% das contempladas têm ligação com religiosos no país. Em dezembro, foi anunciado incremento de 11 mil para 20 mil vagas, o que significaria um aporte de R$ 300 milhões em 2020. A gestão sobre o tema não é de competência do Ministério da Saúde, apesar de muitas instituições afirmarem ofertar “tratamento”, mas do Ministério da Cidadania, na época do anúncio capitaneado por Osmar Terra, um dos principais defensores das CTs e da mudança na política de drogas.

Por trás das cifras, há em sua maioria instituições religiosas que fomentam internações - chamadas de acolhimento - e, ao propor promessas de abstinência total fundamentadas na fé e na migração, criam movimentos messiânicos próprios. Diferentemente das clínicas privadas, alvo da primeira matéria do projeto Dependências, publicada pela Retruco em agosto, as CTs afirmam realizar apenas internações voluntárias. A ida para esses lugares, porém, não é motivada apenas pelo desejo de parar o uso, muitas vezes é sustentada pela promessa moral.


As comunidades prescrevem rituais migratórios que, não por acaso, remontam uma lógica religiosa e fazem uma demarcação entre o passado e o futuro. A mudança imposta como parte da busca desse novo amanhã, na opinião do sociólogo e pesquisador da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea Marco Natalino, é influenciada pela perspectiva religiosa do recomeço, da eximição da culpa. Para isso, há o abandono do passado.


“É o momento em que a pessoa buscar centra-se em si mesma, readaptar-se. Dentro da perspectiva religiosa ou espiritual, é o momento da vigília na tradição cristã, a ideia de que a pessoa vai negar o passado e se abrir para um novo futuro”, explica.


Os responsáveis por comunidades adeptas desse método acreditam que, perto das antigas amizades, sucumbir ao vício é questão de tempo. Migrar é também uma forma de proteção, para escapar de dívidas com traficantes e conflitos. A mudança geográfica, contudo, é apenas o início do afastamento, que ocorre em etapas.


O desligamento com o mundo exterior é feito por estratégias específicas. A pesquisa Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras, publicada pelo Ipea em 2017, elenca seis passos nesse processo: Isolamento espacial/geográfico; Restrições à informação e à comunicação com o mundo exterior; Restrições a visitas; Grau de cooperação com outras instituições; Retenção de documentos; e regras de isolamento inicial.


É como se o mundo daquele interno e dos seus familiares se dividissem em dois: da porta para dentro, a CT, da porta para fora, o mundo de tentações. Os recém-chegados são despojados de seus documentos - prática verificada em 85% das CTs - nessa busca pela “mortificação” do eu anterior. Os celulares pessoais são recolhidos em 91% das CTS, enquanto o acesso à internet é proibido em 86% delas.


Quem, assim como Bruno, recebe tratamento numa comunidade terapêutica pode deixar para trás família, amigos, amores, toda uma vida. O resultado, como se viu no caso dele, pode ser um afastamento repentino da família que, sem respostas, fica a elaborar teorias - como ocorreu a Dona Maria, ao temer a morte do filho. A esposa e dois filhos de Bruno também só foram avisados da mudança depois da internação.


De acordo com a Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas (Febract), não há uma obrigatoriedade de avisar à família do acolhido sobre a ida para a CT. “A família, considerada muitas vezes um fator de proteção para o acolhimento, seria informada pela equipe da Comunidade Terapêutica, com a concordância do acolhido”, explica em nota.


Como funciona a migração


Os residentes são transferidos para outros estados ou cidades conforme as vagas disponíveis e, se recaírem, podem ser realocados para outras regiões. Em alguns casos, as CTs pagam a passagem. Em outros, os custos são da família. A quilômetros de casa, os internos têm pouca ou nenhuma recordação material do passado. Na gaveta do armário do quarto que Bruno divide com outros quatro homens - cada um de um estado brasileiro -, ele guarda apenas um sapato, três bermudas, cinco camisas, um sabonete, desodorante e pasta de dente. As roupas foram doadas por outros internos. O material de higiene pessoal, fornecido pela instituição.


Os contatos com as famílias são feitos, em sua maioria, aos finais de semana. Somente depois de seis meses eles têm a opção, se quiserem seguir o tratamento, de visitar os parentes. De acordo com o Ipea, apenas 35% das CTs permitem visitas familiares desde o início do tratamento; as demais estabelecem regras temporais. As comunidades terapêuticas também estão geograficamente distantes dos centros urbanos, o que denota a característica do afastamento. Segundo o último levantamento do Ipea, 74% das CTs se encontram em área rural.


A assistente social integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Outras Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) Isabel Bernardes afirma que, não necessariamente, isolar alguém potencializa suas chances de deixar o uso abusivo. “A única coisa que isolar promove é ficar ausente. O isolamento social, por si só, não é recurso de tratamento e viola direitos humanos. Não é algo que a gente prescreve”, diz. “O distanciamento, estar em zona rural, dificulta também o acesso e a integração com os serviços públicos de saúde. E um sujeito em abstinência pode ter complicações clínicas”, acrescenta o perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura Lúcio Costa.

Longe da família, Bruno segue a mesma rotina que os outros internos que, como ele, estão na fase inicial do tratamento. No caso da Manassés, a passagem - não por acaso - dura o tempo médio de uma gestação. Os internos são transferidos de cidades - mais de uma vez, se houver recaída - com a proposta de se transformarem em outros, como se fossem crianças em formação.


Às vezes, no meio da noite, Bruno é despertado por um pesadelo. A narrativa é comum a quase todos os sonhos. “Sonho que estou bebendo e usando droga, aí acordo naquele prazer. É o mais difícil.” É a segunda vez que Bruno recebe tratamento numa comunidade terapêutica. Ele saiu antes do tempo de ambas. “Meu propósito é terminar. Mas eu também sei que a saudade é uma coisa complicada”, completa.


Culto todo dia: verba federal no Nordeste migra de católicos para evangélicos

Ilustração: Quihoma Isaac (@quihomaillustration)

Às 7h30, um dos cinco funcionários fixos - todos ex-residentes - passa de porta em porta do alojamento térreo, em Lauro de Freitas (BA), para acordar os 33 homens em tratamento. Durante nove meses, esses internos devem acordar no mesmo horário e seguir a mesma rotina. Meia hora depois, quando a maioria já está arrumada para o dia, é hora da primeira oração. O encontro acontece no “Templo de Orações” da casa. O supervisor da Instituição Manassés, onde a cena acontece diariamente, é Emerson Luiz Vieira da Silva, gaúcho da cidade de Viamão. “Não somos vinculados a nenhuma igreja, mas fortalecemos o espiritual”, frisa ele, ex-interno hoje num cargo de liderança, quando perguntamos sobre a rotina religiosa na casa.


De acordo com o relatório publicado em 2017 pelo Ipea, o Brasil tem cerca de 2 mil comunidades terapêuticas. O vínculo com a religião é presente em 82% delas. De todas as vagas existentes, 41% estavam em entidades de orientação pentecostal, enquanto 26% da oferta, em entidades católicas. O levantamento realizado pela Agência Retruco mostra que essa realidade se mantém entre CTs financiadas com o dinheiro público no Nordeste, mas houve uma mudança na predominação religiosa protagonista nos aportes realizados no primeiro ano do Governo Bolsonaro.


Das 65 comunidades terapêuticas da região que receberam dinheiro do Governo Federal entre 2013 e 2018, 23 eram vinculadas a evangélicos e 32 a católicos. Em 2019, os evangélicos foram mais contemplados. Das 98 instituições financiadas com dinheiro federal, 45 eram vinculadas a evangélicos e 42, a católicos.

“O serviço é fornecido sob o viés de uma política pública, mas tem uma conotação religiosa em um estado laico. É contraditório. É uma política pública, financiada com dinheiro público, portanto precisa obedecer aos princípios da administração pública”, afirma a presidente-conselheira do Conselho Federal de Psicologia, Ana Sandra Fernandes. Para o ex-coordenador geral da Febract e conselheiro da Federação Mundial das CTs Pablo Kurlander, o problema não é a identidade religiosa. “O Brasil tem grupos religiosos vinculados a faculdades, hospitais, entre outros. Só que neles há uma divisão clara entre o que é a religião e o serviço oferecido. Nas CTs, não. Há modelos de tratamento baseados na moralidade, que dão lugar a abusos, coerção e proselitismo”, diz ele, que afirma que isso em nada tem a ver com a matriz de uma “verdadeira CT”.


Como no caso da Instituição Manassés, nem sempre há um vínculo direto com uma igreja ou denominação religiosa, mas um direcionamento espiritual de acordo com as preferências religiosas da liderança da CT, explica o relatório do Ipea. “A espiritualidade entra não exatamente como ‘o tratamento’, mas parte dele: algo que dará um tipo de sustentação ética para que as pessoas se recuperem tanto no interior da CT quando em sua vida posterior.”


A religiosidade tampouco é obrigação, defendem os participantes. Por outro lado, a imposição das atividades religiosas sequer dialoga, muitas vezes, com o passado de crenças dos internos. “Muitas vezes, eles perguntam: Tem que seguir religião? Não tem que. Se não quer participar, tranquilo. Mas acaba sendo uma coisa natural, eles começam a querer participar, cantar, falar alguma palavra”, diz Emerson, da Manassés. O Relatório de Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas, produzido em 2017 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Ministério Público Federal (MPF), entretanto, mostrou que em apenas quatro das 28 das comunidades terapêuticas visitadas pelas equipes na época não foram presenciadas restrições à liberdade religiosa.


A rotina religiosa na Instituição onde Emerson trabalha é diária. De manhã e à noite, seja dia de semana ou feriado, acontecem orações e cultos. Os “pastores” são os cinco “obreiros” da casa. Nos primeiros meses dos dois anos de tratamento, Marcos Paulo, 39, lembra de fechar os olhos sem acreditar que deixaria as drogas naquela rotina de obrigações domésticas e religiosas. “Hoje, costumo dizer aos irmãos, no momento de culto, que com Deus a gente pode tudo. Nós não usamos remédio. Deus é o nosso remédio, com certeza”, diz.


Assistência pela religião é anterior à política brasileira de drogas


A Instituição Manassés ressalta o papel da “palavra de Deus” na internação, considerando-a um diferencial. Não à toa. O encontro entre a oferta de tratamento para o uso abusivo de drogas e a religião não nasceu com as comunidades terapêuticas, apesar de o Brasil tem nelas hoje sua maior expressão e apoiar com verba pública federal “a cura pela fé”. Essa história começa bem antes e se confunde com o próprio passado das religiões judaico-cristãs, que tomaram para si a responsabilidade pela gestão do uso de drogas.


“A noção de abstinência está associada à noção de saúde cristã que, por sua vez, está relacionada à salvação da alma. A saúde seria conquistada mediante a renúncia aos prazeres da carne e a evitação de pecados, sempre mediadas pelo olhar das altas hierarquias eclesiásticas”, explica a socióloga e uma das fundadoras do Grupo de Estudos sobre Drogas da Universidade Federal do Tocantins (UFT) Janaína Capistrano.


As comunidades terapêuticas - cuja origem não é consenso - vinculam-se à religião por essa história pregressa e pela ascensão do discurso de “combate às drogas”. “No século 20, sob o paradigma proibicionista, o fenômeno do uso de drogas passou a ser isolado na noção de ‘problema das drogas’ e, como tal, requeria que os governos oferecessem respostas. Aí as instituições religiosas se viram responsáveis por responder também”, conta Janaína. “Quando as drogas passaram a ser consideradas crime, as religiões, por sua instância moralizadora, foram acionadas a combatê-las”, acrescenta o professor e pesquisador de sociologia da religião da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Orivaldo Lopes Junior.


No Brasil, a primeira comunidade terapêutica foi o Movimento Jovens Livres, fundado em 1968, em Goiânia (GO), a partir da Igreja Presbiteriana do Brasil e cujo lema hoje é “O amor de Deus em Ação!”. Na década posterior, nasceram outras cinco instituições, concentradas no Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país.


A proliferação dessas comunidades ocorre, no entanto, somente a partir dos anos 2000. O avanço desses espaços tem a ver, principalmente, com a visibilidade dada ao consumo de drogas no contextos urbanos, diz a antropóloga e doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda movimentos políticos das CTs, Priscila Farfan. “As políticas públicas não tinham algo muito esquematizado para a questão das drogas, isso ficou para a caridade nos trinta anos anteriores. As CTs desenvolveram a expertise. E nesse momento, pós-2000, chegam e disseram ‘a gente saber o que fazer com o usuário de drogas’, então se aproximaram do estado.”

Essa união, porém, enfrenta resistência. Movimentos de defesa da luta antimanicomial contestam a ausência de fiscalização, de medição de eficácia e a aposta no modelo de CTs frente às políticas públicas de saúde mental do Sistema Único de Saúde do Brasil, baseada na redução de danos. Em carta na qual repudiou a regulamentação do acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas, aprovado em julho pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) questionou a apropriação das funções do Estado por grupos de interesse religiosos “cujos compromissos se afastam de diretrizes definidas com base na ciência”.


Na intersecção do debate, por outro lado, a noção de que CTs religiosas ocupam o espaço deixado pelo Estado se reflete na percepção dos acolhidos e reforça as narrativas do tratamento para as populações vulnerabilizadas. O argumento é que as igrejas são as primeiras a ofertar uma possibilidade de tratamento para moradores de periferia. “É muito mais comum estarmos próximos dessas demandas do que o poder público”, pontua Emerson Silva, da Manassés.


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