Coluna assinada por Jefferson Sousa
O Samsung Y Duos do meu pai gemeu e tremeu tanto que até caiu no chão, mas desta vez com um motivo real para o alvoroço. Marcava duas da manhã no relógio de parede que Maria, minha tia paterna de segundo grau, havia dado a minha família no mês do meu nascimento, em fevereiro de 1994. Era fevereiro de 2015, na linha, tia Maria, na agonia de quem estava prestes a perder o seu caçula, pedia a ajuda do meu pai para que ele fosse "acudir" José, meu primo de segundo grau, que havia sido espancado por três homens e tomado um tiro no pescoço, tudo isso muito próximo do sítio Boa Vista, no município de Itapetim-PE, onde eles moravam. No dia 1 de maio de 2015, estive presente em uma festividade de cantoria de viola na Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape) de Itapetim, no Sertão do Pajeú (PE). Em uma das declamações dos improvisadores, saíram algumas linhas, entre versos sobre meio ambiente e trocadilhos engraçados, uma insinuação de que o que aconteceu com "aquele rapaz" não foi consequência de uma aleatória tentativa de assalto, como concluído pela polícia local após perceber que o carro da vítima foi roubado logo depois da violência. De fato, três semanas depois da cantoria, o vermelho Ford Pampa 1998 de José foi encontrado totalmente carbonizado. Uma curiosidade pertinente é que o aparelho de som do carro, um produto minimamente atraente para quem aparentemente estava praticando um assalto, foi torrado junto com a lataria. Então, de cara, fui tomado pelas duas previsíveis dúvidas: por quê então fizeram isso com ele e como os cantadores sabiam do que sabiam?
O repente, o confessionário do improviso
Aparentemente, eu era o único dali que não sabia disso, mas há diversas subcategorias dentro do improviso da cantoria de viola. Uma delas, intitulada de "Balaio", é uma categoria onde os cantadores sabem informações antecipadas do que será abordado no dia, um tipo de "cola" para ajudar na criação dos versos. Como qualquer pessoa pode vir a participar escrevendo e mandando os seus temas em um papelzinho todo amassado sem necessariamente se identificar, os artistas passam a emitir mensagens que vão muito além de simples rimas metrificadas, afinal, estamos falando de um espaço de interlocução protegido pelo discurso artístico.
A Fetape tem 57 anos de história e é composta por mais de 170 sindicatos de trabalhadores, mas quando falamos de pequenos vilarejos, lá para dentro das zonas rurais das cidades que têm menos habitantes do que a quantidade de pessoas que são assassinadas dentro de Pernambuco por ano, o discurso político necessário e bem estruturado de uma federação como esta não é alcançado com o mesmo vigor de quem teve o privilégio da educação e da centralização urbana.
Os centros físicos da Fetape nestes locais "esquecidos", até às vezes sem o próprio conhecimento da federação, tornou-se um espaço de articulações não partidárias de soluções onde agricultores que sofrem algum tipo de ofensiva se encontram. Sem microfones tagimas plugados em uma mesa de som distribuindo a fala articulada de alguém para uma sala vistosa, os eventos de cantoria de viola se estabeleceram numa frequência ininterrupta e indesfalcável como o único meio de recepção e transmissão de informações.
Maria Ferreira de Lima Sousa, Dona Lia, a primeira mulher a assumir a presidência de um sindicato de trabalhadores rurais no Brasil, me falou, em setembro de 2018, dois meses antes de falecer, "a cantoria de viola sempre foi a capoeira do povo sofrido do sertão, eles acham que a gente está só dançando, mas estamos, por meio da informação, aprendendo a nos defender."
Seguindo a viola
Após descobrir e entender estas informações, passei a fazer por conta própria um traçado de casos a partir destas denuncias descritas nos "improvisos" dos cantadores, na descompassada tentativa de chegar a algo comum entre as vítimas.
Fazendo um recorte de alguns casos já deste ano, trago as seguintes notícias que foram descritas em algumas cantorias e confirmadas por órgãos oficiais da justiça:
Na noite do dia 14 de janeiro de 2019, o agricultor João Vicente de Araújo, 28 anos, foi assassinado na porta de casa, no sítio Egito, Zona Rural do município de São José da Lagoa Tapada, região da cidade de Sousa, sertão da Paraíba. A informação é da Polícia Militar local.
Dia 23 de janeiro de 2019, na área rural da região de Cajazeiras, no município de Triunfo, no sertão de Pernambuco, um agricultor foi morto a tiros enquanto ordenhava uma vaca. A vitima se chamava Cosmo Rosendo de Santana, 42 anos. A Polícia Civil encaminhou o corpo ao Numol da cidade de Patos, na Paraíba.
Numa tarde ensolarada do município de Olho D’água, na região do Vale do Piancó, sertão da Paraíba, no dia 1 de março de 2019, o agricultor Severino Rodrigues Sobrinho, 57 anos, foi assassinado a tiros. De acordo com as informações da Polícia Militar de Itaporanga, os indícios foram de que a vitima sofreu uma emboscada.
Dia 1 de setembro de 2019, por volta das 19h, no distrito de Lagoa da Cruz, zona rural do município paraibano Princesa Isabel, o agricultor João Batista Serafim, 55, ouviu alguém chamando o seu nome na porta, quando atendeu, foi surpreendido com diversos disparos de arma de fogo. As informações são da Polícia Militar local, que até agora não identificou um suspeito.
Dia 6 de setembro de 2019, próximo ao lixão em Catolé do Rocha, sertão da Paraíba, o agricultor Glaucivam Mendonça, de 27 anos, foi assassinado com diversos tiros na cabeça. Ninguém foi preso. A informação é da Polícia Civil.
Coincidências
Aparentemente, seria impossível enxergar algum ponto de convergência útil sem ter sido próximo de alguma vitima. As únicas coincidências disponíveis eram as de que todos os envolvidos moravam em área contempladas pela transposição do rio São Francisco e eram beneficiados do Programa Bolsa Família. Porém, o que não falei acima, é que ainda em 2015, o Samsung Y Duos do meu pai, já com a tela trincada de tanto cair após gemer, gemeu e caiu de novo. Ninguém olhou para o relógio. Era tia Maria, falava que José estava totalmente recuperado. Na primeira conversa que tivemos com ele, Zé contou sorridente que quebraram duas de suas costelas e que se fingiu de morto após receber o tiro no pescoço. "Olha aqui o furo, ó", brincava. "Diziam que era para eu aprender a não mexer no que era dos outros. Tentei lembrar até se entrei sem permissão no terreno de alguém melhor que a gente, algo assim, mas não consigo pensar em nada que faça sentido", contou. Consegui o número de um dos familiares de uma das vítimas citadas acima. Liguei, falei do que se tratava, contei que eu sou um jornalista e que estava querendo entender a situação pois tinha passado por um caso semelhante na minha família. A pessoa me respondeu, como quem contava uma piada, "homem, não tem cantoria de viola por aí não?". Demorei pra entender o que a voz desconhecida por trás do telefonema quis dizer, mas entendi, finalmente, quando no início do mês de outubro de 2019, em uma zona rural do município pernambucano de Tabira, pegaram dois homens tentando matar um agricultor idoso. Desta vez, os nomes dos criminosos não foram divulgados, assim como não se sabe a procedência do caso, exceto, claro, o que uma dupla de cantadores disse, por coincidência, em um improviso recente:
"Gravata e sobrenome
Medem o palmo do caixão
Se você é agricultor
E cresceu neste sertão
Sabe que vai tremer e gemer
Até ir pro buraco no chão"
Por coincidência, também, no dia 15 de outubro de 2019, um dia após a cantoria, duas chácaras de pessoas "importantes" específicas foram queimadas nas redondezas de onde o crime aconteceu, no Sertão do Pajeú. Há muita coincidência e, graças a Deus, muita cantoria de viola.
*O nome “José" é simbólico e foi utilizado para preservar a integridade da vítima descrita acima. Todos os outros nomes foram utilizados sem adaptações.
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