Coluna por Jefferson Sousa
"Cancelado(a)!" é um termo comum entre os usuários ferrenhos das redes sociais, principalmente os do Twitter. Dos motivos mais sérios aos mais simples, linchamentos virtuais usando esse termo surgem como um conceito de bola de neve, ganhando cada vez mais força por onde passa e arrastando midiaticamente uma grande quantidade de pessoas interessadas no assunto da vez. Todavia, como em absolutamente todos os lugares tem alguém ganhando dinheiro com a felicidade ou desgraça alheia, a tal mania dos tuiteiros vem gerando um mercado de lucros que é até difícil de acreditar.
No finalzinho dos anos 1990, já dizia Pierre Lévy, pesquisador francês que é bam bam bam nos estudos de cibercultura, "(...) Tudo aquilo que fazemos na internet tem influência na memória coletiva. Todos têm este poder, que vem junto com a responsabilidade". O que não tinha como prever naquela época é que a ascensão dessa sociedade digital, que tanto influencia a vida fora dela, não estaria devidamente inserida nas constituições de todos os países em que ela chegaria a alcançar e, consequentemente, teria as suas crises geridas por análises padrões feitas antes de sua existência ou através de emendas constitucionais que não dão conta da responsabilidade dos casos, dos crimes de uso indevido de direitos autorais às acusações de injúria, calúnia e difamação.
Impulsos e prejuízos
Os "cancelamentos" têm em sua fórmula básica a ira, um sentimento de aversão facilmente explosivo e que, em nem tão raros casos, pode ser provocado sem razões concretas ou por influências coletivas. Por exemplo, um goleiro de futebol acusado de agredir a ex-esposa teve o seu caso exposto nas mídias e, compreensivelmente, sofreu um linchamento. Outro caso, mas agora não tão compreensível, foi a de uma atriz britânica atacada na "internet brasileira" com as ofensas mais grotescas possíveis após ter publicado no Instagram uma foto comendo coxinha com garfo e faca.
Sabe o que os dois casos acima têm em comum? Ambos lucraram dezenas de milhares de reais em processos contra os canceladores. A moça da coxinha dá até para entender, mas e o goleiro? Entre os ataques ao jogador, havia palavras como "estuprador", "assassino" e, aparentemente o que ele realmente é, "agressor", porém, como ele não tinha ido a julgamento ainda, ele não só acusou os que lhe direcionaram as acusações desconexas como também a da sua atribuição, vencendo absolutamente todos os que foram intimados. Entre as multas que ele recebeu, houve uma específica de aproximadamente 15 mil reais - devido ao alcance que o determinado caluniador tinha na rede social.
De dois anos para cá, não há uma revista científica de comunicação que não esteja abarrotada de análises dos perigos sociais do tal ódio no ciberespaço, principalmente por sua popularização recente, entretanto, as consequências jurídicas da tal prática do "weblinchamento" não estão entre os principais tópicos abordados. Por causa dessa negligência, digamos assim, nasceram dois crimes curiosos. O primeiro, a ação oculta de uma determinada figura pública, política ou empresa que dispara conteúdos falsos em massa sobre ela mesma para destruir a imagem de algum concorrente direto ou indireto. A segunda, uma fórmula estupidamente previsível e que vem se mostrando eficaz no mundo dos golpes: se cancelar.
Golpe do cancelamento
Como não querer descer o cacete em um assediador, ou racista ou homofóbico? É na aura de uma pergunta retórica como esta que habita uma ação facilmente provocativa para uma resposta que vá além de simples palavras. É importante compreendermos que a responsabilidade que Lévy falou [na citação posta acima] também está situada nos micro alcances, sendo assim, um linchamento virtual também pode ser feito de pessoas sem visibilidade para pessoa sem visibilidade, como alguém querendo atacar algum desafeto perante o seu círculo de amizades. É na união dessas premissas que nasceu a armadilha.
Em resumo, alguém cria um perfil falso e se ataca, usando o próprio nome completo e foto. Nos textos, é possível encontrar acusações que possam provocar a ação de grupos comuns, como uma suposta acusação de racismo ou LGBTfobia. Porém, pelo Brasil ser bastante omisso em casos de LGBTfobias e nos crimes raciais - tira-se por aqui não existir exatamente um crime de racismo e sim "injúria racial" -, acusações de calúnia nesses dois pontos não geram tanto retorno financeiro quanto outros casos, como, em ênfase, o assédio e/ou violência sexual, por exemplo.
O Internet Crime Report (ICR-EUA), setor do FBI responsável por relatórios anuais dos crimes cibernéticos nos EUA, só passou a cogitar e, agora, no segundo semestre de 2020, a analisar os linchamentos propositais como golpes. "Não há anonimato na internet, mas muita gente ainda não entendeu isso. Quando alguém realiza a calúnia, mesmo que de maneira pré-moldada pela vítima, o caluniador ainda está cometendo um crime. É um golpe que não sei se podemos chamar de golpe, pois está condizente com a lei e, em um caso de linchamento virtual, os únicos criminosos a serem considerados serão os linchadores", relatou Donna Gregory, chefe da ICR-EUA, em entrevista ao jornal Vanity Fair.
Se todo cuidado é pouco para não se deixar levar por uma comoção raivosa pessoal ou coletiva e cair numa arapuca dessas, a ausência de informação contra crimes e os seus respectivos criminosos pode ser tão preocupante quanto. O texto aqui não é condenatório às pontuais exposições, como também não se diz consoante com elas - não quero ser cancelado por um lado ao escolher o outro lado -, tendo o intuito primordial de alertar para a descrita artimanha e promover reflexões sobre como estamos reagindo diante das constantes ações e reações que as redes sociais nos impõem.
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