Reportagem por Luane Ferraz
A primeira gestação aconteceu há 16 anos, quando ainda cursava a faculdade de psicologia. Desta, nasceu Gianlucca. A segunda, quase uma década depois, veio Fernando, hoje com 7 anos. O espaço de tempo entre as duas gestações de Jucilene Braga, 39 anos, ouvidora e deficiente visual, a permitiu experimentar a maternidade de formas completamente distintas, e isso se deve, principalmente, às transformações nos recursos de acessibilidade. “Eu só tive contato com alguns auxílios na segunda gestação. Utilizei a audiodescrição no chá de bebê, no primeiro ultrassom do Fernando e mais na frente pude fazer também um boneco em gesso 3D que simulava o formato, a posição e o tamanho dele na minha barriga. O meu parto também foi com audiodescrição. Tudo isso mexeu muito com a minha conexão com o bebê". Jucilene conta que a falta de visão nunca foi um empecilho pessoal na busca por independência. Isso inclui as decisões quanto a sua liberdade sexual e reprodutiva. O sonho de ser mãe sempre existiu e diferente da grande maioria semelhante a sua condição, a sua família acolheu e fortaleceu esse desejo. No entanto, da porta de casa para fora foi preciso lidar com uma sociedade que a reduz ao ponto de só enxergar a sua limitação biológica. “As pessoas, no geral, colocam a deficiência à frente de tudo. Eu apenas sou a Jucilene profissional, mulher e mãe, muito depois de ser somente uma pessoa que não enxerga.” Quando a maternidade aconteceu e ela pôde realizar o sonho de ser mãe, os apontamentos, que antes carregavam mais um tom de piedade, tornaram-se questionamentos sobre sua capacidade no novo papel social.
“Enquanto eu estava grávida, já aconteceu de pessoas falarem comigo na rua ‘que bom que você vai ter um filho pra cuidar de você”, ou quando meu filhos já estavam um pouco mais crescidos, falarem para eles ‘cuida da mamãe, viu?’. Isso me incomoda demais”, conta.
A falta de legitimidade da capacidade da mulher sobre a maioria do seus papéis sociais é um fato. Quando esse recorte de estudo são as mulheres deficientes e, neste caso, as visuais, essa realidade é ainda mais cruel. Desde a infância até uma possível maternidade, há uma verdadeira corrida dessas mulheres para garantir provas de que são capazes de ser independentes e podem cuidar, criar e educar uma criança. Para a psicóloga e autora do mestrado Dar à luz quando não se vê: Relatos de mulheres com deficiência visual sobre a maternidade, pela UFPE, Léa Belo, esse é um estigma já comprovado por outros estudos e reforçado nos relatos de vida das suas 18 entrevistadas. “Essas mulheres podem ser excelentes mães, mas elas são cegas. A sociedade dá esse único lugar a elas e é retirado toda a possibilidade dela ser mais do que uma pessoa com uma deficiência”. As dificuldades ficam ainda maiores quando se analisa a condições socioeconômicas desse público. No Brasil, ainda não há políticas públicas suficientes e eficazes que encorajem e retenham a entrada dessas mulheres no mercado de trabalho, sendo assim, é esperado que a grande maioria delas atravesse a dependência financeira, o que por sua vez, interfere diretamente na construção da maternidade. “90% das minhas entrevistas queriam ser mães, mas todas elas acabaram exercendo a maternidade de forma muito solitária. Muitas relataram a dificuldade de trabalhar, isso quando há trabalho, e cuidar dos filhos. É uma função dobrada.” Audiodescrição: tradução em palavras É contra toda essa falta de espaço, autonomia e desigualdade de condição, que a audiodescritora, Lívia Motta, uma das pioneiras do recurso no país, vem lutando desde 2005, quando resolveu dar um salto na sua carreira de professora de inglês e abraçar a causa da acessibilidade comunicacional. Desde então, Lívia vem sendo os olhos de muitos e esteve presente quando os primeiros trabalhos começaram a tomar força no Brasil. Ela participou do primeiro parto com audiodescrição, bem como, da primeira ópera, peça teatral e casamento e hoje conta suas maiores experiências no blog Ver com Palavras. A audiodescrição consiste na tradução das imagens em palavras, por meio de uma descrição objetiva. No campo acadêmico, ainda não existe no Brasil uma graduação regulamentada, apenas especializações, cursos livres e projetos de extensão, o que dificulta o conhecimento sobre o número preciso de atuantes no país. Em 2015, houve uma especialização semi-presencial na UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e em 2016, uma outra à distância pela UECE (Universidade Estadual do Ceará). Nos dois eventos foram formados uma média total de 70 profissionais. Na sala de parto, Lívia esteve presente três vezes como audiodescritora. Duas dessas mães que a receberam estão nesta reportagem. Segundo a profissional, foi preciso muita dedicação para atuar também na área de saúde. “Eu sempre preciso estudar muito, afinal não sou da área médica, então é tudo novidade para mim também.” Além disso, é preciso todo um planejamento antes e no dia do parto. “Primeiro, é necessário conversar com o hospital e os médicos envolvidos para verificar se permitem a minha presença. Caso estejam todos de acordo, no dia escolhido eu coloco toda a roupa paramentada, os médicos indicam o local que eu devo ficar dentro da sala e não posso tocar em nada também”, explica. A partir daí cada palavra importa para Lívia e os pais. As características da sala, as pessoas que estão ali e as suas funções, os instrumentos médicos que serão usados, os procedimentos que serão feitos. É um show de sinestesia. Onde não se vê, mas se ouve, sente e emociona. “A gente entra na vibração de emoção. Eu vou transmitindo toda a sensação e eles vivenciam em igualdade de condição.” Para a Jucilene, a primeira mãe que Lívia fez uma audiodescrição em parto, a emoção foi indescritível.
“Eu sempre tive receio dos procedimentos médicos, normalmente não paro de pensar ‘o que será que ele tem na mão?’, ‘o que será que ele vai fazer?’. Acreditei que no meu parto seria igual, mas a audiodescrição me permitiu vivenciar outra experiência e guardar outras lembranças e sensações do momento”.
Além da emoção vivida pela família, Lívia revela como a sua presença impacta nos profissionais de saúde. “As três vezes que pude participar de um parto percebi que a minha presença na sala também provocou uma alteração no comportamento dos profissionais presentes na sala. Eles perceberam a necessidade de ter outros procedimentos que pudessem beneficiar o casal”, conta. Apesar disso, reforça que algumas vezes a falta de preparo com os deficientes visuais dificulta o seu trabalho. “Já aconteceu de um hospital vetar a minha presença com a justificativa de que o parto era de alto risco, mas a mãe, que é uma amiga, teve uma gestação ótima, sem problemas. Foi muito triste porque o fato dela ser uma pessoa com deficiência, neste caso, visual, não quer dizer que ela vai ter um parto mais complexo que uma pessoa sem deficiência”, explica.
Lívia não cobra para realizar a audiodescrição em parto, nem em casamentos. “Eu não saberia dizer o preço. Para mim, é uma contrapartida do nosso trabalho. Eu tenho uma emoção até hoje de poder ser os olhos das pessoas que não enxergam. A audiodescrição tira um pouco a ansiedade de momentos como esses e permite as pessoas se emocionarem, se surpreenderem, se indignarem”.
No Recife, a audiodescrição no parto ainda é uma prática quase inexistente. A associação Pernambucana de Cegos (APEC) não encontrou em seus registros de mães associadas nenhuma que tivesse passado pela experiência. O mesmo aconteceu com a psicóloga e audiodescritora recifense, Liliana Tavares, que apesar de 10 anos de vivência na área com esse público, nunca chegou a levar a audiodescrição para um parto na cidade. Sua atuação já atravessou casamentos, funerais e principalmente produtos audiovisuais, como os filmes ‘Bacurau’, ‘Me guardando pra quando o carnaval chegar’ e o Festival VerOuvindo. “É um trabalho de engajamento social. A audiodescrição é mediação. Ela insere outra narrativa no contexto da obra e por isso se apresenta interessante até para quem enxerga.”
Os olhos do nascimento de Sofia
Quando Elke Zimbardi, advogada, deu à luz a Sofia, outras duas pessoas, além da equipe médica, estavam ao seu lado para celebrar o momento. Diego, pai da sua filha, deficiente visual, e Lívia Motta. Era a segunda vez que a audiodescritora dividia um momento tão importante com o casal, a primeira havia sido 3 meses antes quando ela fez a audiodescrição do casamento dos dois. Elke não é deficiente visual, mas no dia do seu parto o recurso da audiodescrição foi tão importante quase como se ela fosse. “Eu queria muito saber que o Diego estava sendo assistido, que ele estava conseguindo compartilhar daquele momento comigo. Não seria a mesma coisa sem a narração. Nós estávamos em sintonia, dividindo o nascimento da nossa filha e aquilo me deixou muito feliz.”
A deficiência de Diego, no entanto, por pouco não impediu o casal de estar junto no momento tão esperado. Ele conta que antes de saber que havia a possibilidade de utilizar o recurso, pensou em abrir mão de estar na sala de parto. “Eu cogitei deixar a minha mãe ir no meu lugar porque eu não ia enxergar nada, nao ia falar nada, a Elke ia precisar de um apoio maior. Foi quando eu conversei com a Livia e vi que era possível a gente fazer de uma outra forma. Foi emocionante”. Elke, ainda, relembra que durante a gestação os dois tiveram a “sorte” de encontrar profissionais atenciosos com as limitações do Diego. “Encontramos médicos mais humanizados. Nas minhas ultrassons, por exemplo, eles descreviam com muitos detalhes e explicavam todo o procedimento para ele. Não havia uma técnica, era sensibilidade mesmo, e só isso já fez muita diferença.” Essa no entanto não é a realidade da maioria. Há algum tempo atrás, Lívia realizou um estudo com um grupo de pessoas com deficiência visual sobre atendimentos de saúde. O resultado se transformou no artigo Audiodescrição na Reabilitação de Pessoas com Deficiência Visual, onde as principais queixas descritas são: “pouco conhecimento que os profissionais têm a respeito da deficiência, à falta da verbalização dos procedimentos que serão realizados como nos exames, à falta de informação sobre o ambiente e algumas técnicas de como conduzir e orientar a pessoa com deficiência visual.” Na prática, todos esses apontamentos se materializam. Em Recife, por exemplo, Gabriela Correa, ginecologista e obstetra do IMIP, uma da referências de saúde pública da capital, conta que durante os seus cinco anos de atuação dentro do hospital, nunca recebeu nenhuma orientação e não lembra de ter visto algum projeto voltado para esse público. “Os poucos casos de mulheres com deficiência que eu atendi, foi preciso a gente se virar. Não temos ninguém que saiba trabalhar com LIBRAS para tentar dar um auxílio, então a gente se comunica através da mímica ou do toque, no caso da deficiente visual. A gente trabalha com muita sensibilidade, então são as estratégias que a gente consegue desenvolver no momento mesmo.” Outros hospitais públicos de Pernambuco como Hospital das Clínicas, Cisam, Barros Lima, Hospital Agamenon Magalhães e Bandeira Filho, foram contactados ou tiveram médicos procurados pela produção dessa reportagem. Todos afirmaram não ter experiência, não saber sobre nenhum recurso ou projeto de audiodescrição. Vale lembrar que em 2009, o Ministério da Saúde lançou a cartilha Direitos Sexuais e Reprodutivos na Integralidade da Atenção à Saúde de Pessoas com Deficiência e nela descreve em suas diretrizes de ações básicas: “Garantir a mulheres com os diferentes tipos de deficiência a assistência no pré-natal, parto e puerpério, de acordo com a classificação de risco.”
Comments