Reportagem: Alice de Souza / Fotos: Marlon Diego
Yakari Caucho, 36 anos, escolhia sempre dois dias na semana para voltar a Igarassu, cidade do litoral Norte de Pernambuco onde alugou uma casa para viver com os três filhos. Dava preferência aos dias de consulta médica do menino do meio ou então àqueles em que precisava fazer feira para pedir folga aos patrões. No último dia 10 de novembro, estava se organizando para sair do local de trabalho no Recife quando recebeu uma mensagem no bate-papo do Facebook.
• Mami te amo
• Yo tambien dnd andas
• En la aldea
• Cm estan todos que haces voy parq igarassu en un rato
Juan Malave sempre iniciava as conversas com uma declaração amorosa quando queria pedir algo. O menino de 15 anos queria convencer a mãe, Yakari, a trazer comida. Eram 11h46 quando o celular dela vibrou pela primeira vez com a mensagem do filho do meio. Ele estava com familiares na sede da ONG Aldeias Infantis e ia jogar bola. Os dois trocaram mensagens breves, nas quais Juan reforçou que estava com fome. A última frase enviada para Yakari chegou às 12h. Os 25 minutos seguintes mudaram a vida da família para sempre. Aquele seria o último dia de trabalho de Yakari, mas ela ainda não sabia.
Um mês depois que chegou a Pernambuco, no dia 2 de fevereiro de 2019, Yakari conseguiu um emprego de cuidadora de idosos na capital. Pela distância entre a cidade onde morava e o Recife, passava cinco dias da semana no trabalho e voltava a Igarassu pela demanda dos filhos. Ela é cozinheira, mas não estava em condições de escolher emprego. Aceitou a primeira oportunidade. Depois de deixar a cidade de El Tigre, na Venezuela, e morar 10 meses com os três meninos nas ruas de Boa Vista, estado brasileiro de Roraima, finalmente ela estava reorganizando a vida.
A rotina de pedir alimentos na porta de supermercados, juntar madeiras do chão para cozinhar e lavar as roupas no rio tinha ficado para trás. A família chegou a Pernambuco por meio do programa de reunião familiar da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Yakari veio encontrar uma prima, que já estava com a família em Igarassu. Os parentes chegaram por meio de outro programa, a interiorização de venezuelanos apoiada pela ONG Aldeias Infantis SOS Brasil. Diferente deles, Yakari só recebeu a passagem aérea. Precisava alugar uma casa e pagar as contas, por isso o emprego era tão importante.
Com o dinheiro do salário de cuidadora de idosos, ela começou a viajar uma vez por mês para comprar roupas e relógios em Caruaru. Não pagava a passagem, que era cortesia da empresa da família dos patrões, donos de uma agência de turismo. As peças eram vendidas por Juan Malave e o irmão mais velho, Carlos Malave, 18 anos, entre a comunidade venezuelana moradora dos arredores da Aldeias infantis, em Igarassu. O arrecadado, mais o emprego de Carlos em uma pizzaria no Recife, permitia à família pagar as contas de luz, água e o aluguel de R$ 400.
“A gente é muito trabalhador, chegou aqui trabalhando”, frisa Yakari. Na Venezuela, ela tinha dois empregos de cozinheira, mas tudo começou a ficar difícil. “Chegou ao ponto em que o salário só dava para fazer uma refeição ao dia”, lembra. Primeiro, Carlos veio para o Brasil com o pai, depois Yakari chegou. Trabalhou dois meses, enquanto morava na rua, fazendo rosquinhas e sonhos para vender. Alugava o fogão de outra venezuelana, já estabelecida em Roraima, para cozinhar. Com o dinheiro, conseguiu trazer Juan Malave e o caçula, Hendrys Caucho, 11 anos.
A viagem a Pernambuco foi bastante aguardada pela família. Não só pela possibilidade de reencontrar os seus, mas para achar trabalho e ter de volta um teto. A Acnur estima que existam 4 milhões de venezuelanos refugiados e migrantes ao redor do mundo. No Brasil, são 224 mil. Uma média de 500 cruzam a fronteira todos os dias, principalmente para Roraima. “Lá há muito venezuelanos vivendo na rua. Não há emprego para todos. Alguns brasileiros chegam a nos insultar porque estamos nas ruas. Tem muita briga por comida. Está colapsado”, conta Yakari.
Encontrar emprego e ser integrado, de fato e direito, à comunidade brasileira é um dos maiores desafios dos venezuelanos. A OIM estima que apenas 9% daqueles que chegaram ao Brasil conseguem emprego formal nas primeiras semanas. Um levantamento feito com 4,1 mil deles pela ONU mostrou que um em cada três permanece com dificuldade para comer. O principal interesse deles em terras brasileiras, além de fugir da situação econômica e política do país de origem, é obter informações e conseguir um trabalho.
Por tudo isso, Yakari acreditava que o pior já tinha passado. Diante das pequenas vitórias que havia alcançado depois de tanto perrengue, decidiu que era justo usar parte do dinheiro arrecadado pela família para ajudar outros venezuelanos. Trouxe a irmã, o marido e os dois filhos. Botou dentro de casa. Trouxe outras duas famílias, de primas, com 9 pessoas. Alugou uma casa na rua de trás, por R$ 300, e pagava o aluguel, a luz e a alimentação deles. Trouxe ainda uma desconhecida, que morava nas ruas de Boa Vista com dois filhos, de 2 e 3 anos, e que estava grávida de um terceiro. “Eu vim mudar de vida. Passei muita dificuldade para chegar aqui. Trabalhei muito, me estabilizei e passei a me dedicar a ajudar mais venezuelanos”, conta.
A mudança (não planejada) de vida
Naquele dia em que recebeu a mensagem de Juan, Yakari voltaria para casa. Um intervalo de 25 minutos, depois da última comunicação com o filho, foi suficiente para mudar a vida da família. Juan se preparava para jogar futebol, uma de suas paixões, quando foi convocado por uma prima segunda a ir buscar doações na vizinhança. A mulher havia chegado a Igarassu cinco dias antes e tinha conseguido duas camas e dois colchões de doação. Pediu a Juan para ir com outros dois venezuelanos a um beco nas proximidades pegar os móveis.
Perto dali, um homem chamado Antônio Targino da Silva Filho, 31 anos, estava enfurecido. Havia descoberto pelas redes sociais que o filho criado há seis anos por ele era de outro homem. Decidiu, naquele mesmo dia 10 de novembro, sair de casa para matar o culpado. Chegou bêbado e com uma arma na mão à mesma rua onde Juan estava com Daniel José López Romero, 25, e Johan Manuel Sanchez Vizcano, 32, recolhendo os móveis. Ali, outros vizinhos já sabiam da confusão e estavam de portas trancadas. A única casa aberta, justamente para a passagem das camas, era onde Juan estava.
O homem fez algumas perguntas e todos correram. Neste momento, começou a atirar. Juan ainda correu, mas tropeçou e caiu no chão. Foi atingido nas costas e na cabeça. Os outros venezuelanos tiveram mais tempo, também foram baleados, mas conseguiram sair do imóvel. Um deles chegou ensanguentado na sede da ONG e contou do ocorrido. Na mesa, três pratos de comida esperavam o regresso deles.
Yakari estava organizando as coisas no trabalho quando recebeu um telefonema avisando que uma tragédia tinha acontecido. Sem saber ao certo do acontecido, foi para Igarassu. Ao chegar, encontrou o filho morto. Antônio Targino foi preso no dia 21 de novembro, depois de fugir da comunidade. À polícia, disse que havia atirado porque não entendeu o que os venezuelanos diziam.
Uma conta que não fecha
Depois da morte de Juan, Yakari precisou se ausentar do trabalho por seis dias. O filho Carlos, por 15. Os dois acabaram sem emprego e deixaram de ajudar os parentes venezuelanos. “Minha ideia era ajudar muito mais gente. A condição para trazer eles a Pernambuco era que eles, quando se estabilizassem, ajudassem mais gente. E, assim, ia todo mundo se ajudando. Não vou dizer que, por causa disso, esperava que só coisas boas acontecessem comigo. Porém, agora, não tenho condições de ajudar mais ninguém”, diz.
Sem o filho e sem trabalho, Yakari viu a saúde mental definhar. Passou a ficar mais dentro de casa. Evita sair pela vizinhança. Cada vez que ia comprar mantimentos, alguém perguntava se ela era mãe de Juan, o menino assassinado. A dor e as lembranças do ocorrido voltavam contudo. A primeira decisão foi se mudar para a comunidade localizada do lado oposto da BR-101 Norte, onde era mais desconhecida. Queria evitar também que as pessoas ficassem questionando se Juan era bandido. “Meu filho era um trabalhador. Se ele tivesse feito algo ruim, eu estaria com vergonha, mas não foi isso. Ele morreu por engano”, conta.
Para além da falta de comida e da desvalorização da moeda local, o verdadeiro motivo da vinda da família para o Brasil era Juan. O menino precisava tomar medicamentos controlados, pois tinha Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Precisava de acompanhamento psiquiátrico e neurológico. Na Venezuela, estava sem tratamento, pois a família não conseguia encontrar o medicamento necessário. “Aos 9 anos, ele caiu de uma árvore e ficou com um coágulo na cabeça. Desde então, ficava irritado muito fácil, era difícil controlá-lo sem o remédio. Aqui, estava tudo bem”, explica Yakari.
Juan queria ser jogador de futebol, havia representado a pátria dele na Copa de Futebol dos Refugiados e Imigrantes, realizada em setembro. Estava com uma namorada, também venezuelana, e dizia aos irmãos que agora era um homem de responsabilidade. Vendia relógios e roupas para comprar presentes para ela. Gostava de aprontar das suas, como quando roubava as roupas da mãe e do irmão mais velho para não precisar lavar novas peças. Ou quando tentava chantagear a família para evitar tomar os dois comprimidos que necessitava ao dia.
Um dia antes de morrer, Juan decidiu dar todos os relógios e a maioria das peças de roupa aos compatriotas vizinhos. Dele, sobraram algumas peças, muitos vídeos e fotos no celular, que Yakari faz questão de guardar. Sobrou também um sofá cinza de dois lugares, rasgado e com o estofado aparente, que ele encontrou no lixo há três meses e decidiu presentear à mãe. O móvel é hoje o mais importante da casa, está na entrada, coberto por uma lençol de cetim azul escuro.
No canto da sala, Yakari reproduz uma tradição venezuelana e deixa uma lápide encostada com um copo de água cheio, uma vela e pedaços de cigarro. “Não gostava quando ele fumava, mas é algo que me lembra dele”, diz. Todas as segundas-feiras, ela acende a vela para o filho. A vida mudou completamente. Yakari agora passa os dias dentro de casa. Os outros filhos não ficam mais o começo da madrugada na casa de amigos, voltam antes das 20h. Sempre que possível, evitam falar, para ninguém reconhecer a diferença do idioma. “Fico triste, vim aqui mudar de vida com meus três filhos, agora só tenho dois”, lamenta ela, que só escancara sorrisos lembrando das peripécias de Juan.
Passado um mês e meio do ocorrido, Yakari voltou a buscar emprego nesta semana. Por causa da repercussão na mídia, conseguiu moradia e trabalho para outros parentes, já não precisa sustentá-los. “Algumas pessoas e igrejas ajudaram, deram casa e emprego para eles. Mas nós seguimos precisando de ajuda”, diz, adiantando, contudo, que não quer se aproveitar da situação. “Não quero trocar uma geladeira velha por uma nova. Na verdade, o que eu quero é um emprego. Cheguei até aqui, depois de tanto sacrifício, trabalhando.”
Por enquanto, a ideia dela é permanecer em Igarassu e no Brasil. Recomeçar. Retomar os planos de montar uma loja e dar utilidade aos 20 manequins que comprou e agora se amontoam na área de serviço da nova casa alugada. A urgência é pagar o aluguel de R$ 400, que vence na próxima semana. Yakari, porém, tem outro motivo para para sair todos os dias caminhando em busca de emprego nas ruas de Igarassu. Quer cremar o corpo de Juan e precisa juntar R$ 4 mil para isso. “Cheguei aqui com meus três filhos e não voltarei com dois. Mesmo se a Venezuela melhorar, sem ele não volto.”
A situação dos venezuelanos
4 milhões de refugiados e migrantes ao redor do mundo
464,2 mil solicitantes de refúgio da Venezuela no mundo
1,8 milhão vivendo sob outras formas legais de estadia nas Américas
224 mil venezuelanos vivendo no Brasil
500 venezuelanos atravessando por dia a fronteira com o Brasil
Em 2011, o Brasil teve 4 solicitações de refúgio de venezuelanos
Em 2018, esse número passou para 61,6 mil
A questão do emprego*
9% dos venezuelanos que entram no Brasil por Roraima conseguem um emprego formal nas primeiras semanas
59% dos refugiados e migrantes venezuelanos que estão em Roraima estão sem trabalho
1 em cada 3 tem dificuldade em ter o que comer
32% dos venezuelanos entrevistados tinham emprego em seu país de origem
29% dos venezuelanos possuíam alguma formação especializada (ensino médio técnico, tecnólogo ou faculdade
51% dos entrevistados disseram que sua primeira área de interesse era informação e suporte para a geração de renda e trabalho
7, 1 mil venezuelanos imigrantes estão em postos de trabalho formais no Brasil
Nos 6 primeiros meses de 2019, a movimentação de trabalhadores imigrantes venezuelanos no mercado formal brasileiro foi superior a de todo o ano de 2018
*Levantamento Monitoramento do Fluxo da População Venezuelana - Organização Internacional para as Migrações (OIM)
Fonte: Acnur, Conare e Organização Internacional para as Migrações (OIM)
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