Reportagem por Alice de Souza e Fernanda Santana
“Quando você voltar, a gente te consegue um emprego e te dá um lugar para morar.” A oferta soou como oportunidade para Jailson Santos, 44, cujo lar era uma calçada da Avenida Dantas Barreto, no Recife. Ainda assim, ficou reticente. Pediu mais informações. Na semana seguinte, o grupo de voluntários da ONG Recife do Bem voltou com um computador. Mostrou imagens da Fazenda da Esperança Padre Ibiapina, na zona rural de Alhandra, Paraíba, a 88 quilômetros de distância. Era para lá onde Jailson deveria ir, em troca de uma vida digna depois de 365 dias, segundo a oferta dos visitantes.
O grupo da ONG distribuía alimentos e banho para a população em situação de rua do Centro do Recife, como Jailson. Depois de observar o comportamento de alguns, prometia a possibilidade de um futuro melhor, se aceitassem receber tratamento em uma das principais comunidades terapêuticas financiadas com dinheiro público no Brasil, a Fazenda da Esperança, vinculada à Igreja Católica. Quando recebeu a proposta, Jailson ouviu os voluntários dizerem que ele não “tinha perfil de rua”, “falava bem, era articulado”.
“Eu tinha tanto desejo de não usar mais o crack que resolvi passar por tudo aquilo. Pensei: eu já engulo sapo nas ruas, em todo canto. Já passo por privação de alimento, de não comer o que quero.” Jailson aceitou a oferta.
A busca ativa nas ruas como formas de recrutamento dos internos foi descrita como muito frequente por 20% das CTS, de acordo com a Pesquisa Nacional de Comunidades Terapêuticas conduzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2017. A procura em centros de população de rua é muito frequente em 18% das comunidades. Menos da metade dizem nunca ter optado por essa estratégia. Embora não seja o método de conquista mais frequente, o convite feito nas ruas é sedutor, pelo contraste entre o que se tem e o que se oferece.
O recrutamento nas ruas também opera na lógica de retirar da visibilidade social o uso abusivo de drogas, que pautou a ascensão das comunidades terapêuticas como método de acolhimento e tratamento no Brasil na última década. “Para se construir um problema, é preciso que ele exista na realidade. E houve um momento, perto de 2010, em que as cenas de uso era repetidas em propagandas eleitorais, reportagens, novelas”, explica o antropólogo e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Ygor Alves.
O consumo, antes privado, começou a ficar visível. “Esse contexto se aproxima do pânico moral que atrela o consumo de drogas à violência”, explica a antropóloga e doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda movimentos políticos das CTs, Priscila Farfan. O pânico é gerado pela chamada ‘guerra às drogas’, que exclui a promoção da educação para o uso, defende o psicólogo e professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) Fábio Orsini Lopes.
Por isso, propostas como a recebida por Jailson Santos soam como uma oportunidade. “As CTs vêm como uma alternativa a debilidades de outra ordem, a falta de um suporte social. Os próprios pacientes criam a falsa ideia de que a internação resolve os problemas deles. Eles depositam grandes expectativas na internação”, afirma a especialista em dependência química e integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Outras Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) Isabel Bernardes.
A expectativa também é estendida a quem oferece o apoio. Até hoje, as imagens de Jailson Santos dentro da Fazenda Esperança de Alhandra estão publicadas na página do Facebook da ONG Recife do Bem. Em um post de setembro de 2017, ele é apresentado como ex-usuário de drogas, dono de uma vida que “decidiu deixar para trás” - narrativa comum nas CTS, como mostrou a Retruco em matéria anterior. “O passo foi dado e o caminho para o Recomeço também”, dizia a publicação, com duas imagens do antes e depois de Jailson. Abaixo, estavam publicados dados da conta bancária da Fazenda, para interessados em ajudar.
Quantidade de CTs financiadas por estado de 2013 a 2019
O recomeço que, na verdade, é uma conversão
Em um sábado de maio de 2016, um dos voluntários buscou Jailson, de carro, na Avenida Dantas Barreto. De lá, partiram para a comunidade. “Foi doloroso, eu não queria mudar de cidade”, lembra. Jailson buscou a abstinência das drogas e encontrou a de princípios, para conseguir permanecer na CT até abril de 2017. Pelo tratamento, pagava um salário mínimo por mês, que recebia via programas de transferência de renda.
A Fazenda da Esperança Padre Ibiapina, em Alhandra, a 40 quilômetros de João Pessoa, na Paraíba, foi fundada em agosto de 2006. Quando Jailson entrou lá, 15 das 55 vagas eram financiadas com dinheiro do Governo Federal. Essa minoria pertence à cota de vagas sociais, custeadas com dinheiro público. A Fazenda da Esperança Padre Ibiapina recebeu R$ 664 mil do Governo Federal, entre os anos de 2014 e 2017, segundo dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
A Fazenda da Esperança foi a instituição no Nordeste que mais recebeu dinheiro público federal nos contratos firmados entre os anos de 2013 e 2015, e cujos repasses foram vigentes até janeiro de 2019, segundo levantamento obtido via LAI pela Agência Retruco. Três em cada dez comunidades terapêuticas financiadas pela governo na região eram uma Fazenda da Esperança. Juntas, as 20 unidades custeadas receberam entre 2013 e janeiro de 2019, R$ 14,8 milhões - o que representa 24% do valor total repassado. Por cada adulto acolhido, o valor transferido à época de Jailson era de R$ 1 mil por mês. Se fossem criança, adolescente ou mãe nutriz acompanhada do lactente, era R$ 1,5 mil.
A rotina de regras, ao entrar na comunidade, era completamente desconhecida a Jailson. Missas ao nascer do dia, trabalho na produção de biscoitos, limpeza dos alojamentos, mais missa, jantar - sempre cuscuz com salsicha - e dormir. A vontade em deixar o consumo de crack o fez criar estratégias de sobrevivência. “Eu fingi que estava fazendo o que eles queriam para poder ter as coisas que eu precisava”, conta. Atender às vontades da obra significava participar das missas, arrumar o altar, fazer as homilias, o que torna os internos mais bem vistos, segundo Jailson.
Ele cumpriu os ritos sacramentais católicos, fez primeira comunhão, depois crisma. Aos poucos, ascendeu na hierarquia. Com três meses, foi chamado para ser coordenador de uma das casas. Só aceitou o convite depois de seis meses, quando passou a coordenar também as vendas dos biscoitos produzidos na laborterapia da unidade. Assim, ganhou algumas regalias, mas não salário. Trocou o quarto que dividia com outros cinco homens por um só para ele. Podia ter um guarda-roupa, celular e televisão.
Ganhou o direito, ainda, de sair duas vezes por semana, sábados e domingos, para comercializar os produtos nas paróquias do entorno. Nesses momentos, também discursava ao público para sensibilizar a comunidade religiosa e angariar doações. “Quem conseguia fazer os testemunhos era bem visto, tinha privilégios”, explica.
As frustrações, no entanto, permaneciam. O conflito de acatar ordens trouxe momentos de angústia. Chegou a pensar em fugir. “Passei por várias crises, mas depois eu me recuperava e pensava: eu aguento a rua, não aguento isso aqui?”. O fim da história de Jailson na Fazenda Esperança aconteceu 11 meses depois do início. A gota d’água foi uma briga com um coordenador recém-chegado. Jailson decidiu ligar ao pessoal da ONG que o tirou da rua. Diferentemente da primeira vez, ninguém o ajudou no transporte. Um padrinho, como são chamados os chefes dos coordenadores da Fazenda da Esperança, o deixou no posto da Polícia Rodoviária Federal, na BR-101, a 500 metros da Fazenda.
De lá, Jailson pegou um ônibus para João Pessoa, de onde seguiu ao Recife. Alugou um kitnet e nunca mais voltou para as ruas. Nem foi mais à missa ou voltou a consumir com frequência as substâncias químicas. Ele contou detalhes da rotina vivenciada na Fazenda durante dois encontros com a Retruco, em um bar. No primeiro, pediu para ficar numa mesa externa, para fumar cigarro mais à vontade. No segundo, tomou dois copos de uma cerveja de 600ml.
A Reportagem procurou a Fazenda da Esperança, para confirmar os valores repassados e obter detalhes dos métodos de tratamento, mas não obteve retorno. A entidade aumentou em 25% seu contingente de acolhidos durante a pandemia da covid-19. “De certa forma, me ajudou. Não pela religião, mas porque pude passar um ano de reflexão. Como lá eu me frustrava muito, aprendi a lidar com as frustrações sem precisar fazer uso”, diz Jailson, sobre a experiência. “Foi bom essa parte, mas dizer a você que tem tratamento, não tem, não.” Até hoje, Jailson recebe convites para voltar a trabalhar na comunidade, como acontece com os internos que se destacam no processo de conversão. “Dizem que eu dou para a obra.”
O trabalho nas comunidades terapêuticas retroalimenta o seu poder
Depois do fim do tratamento - o tempo varia de instituição para a instituição e se houve recaídas - há dois caminhos à frente do ex-interno: colocar a mochila nas costas e começar uma nova fase ou passar a “obreiro”, uma espécie de funcionário das comunidades terapêuticas. As casas se organizam com estruturas próprias e os obreiros são um nível mais elevado da hierarquia que, a partir dali, divide os ex-residentes por cargos. Os mais altos são os de diretoria e presidência, pelos quais eles são assalariados, mas sem carteira de trabalho. Durante o tratamento, eles também são treinados para, no futuro, se seguirem como obreiros, agirem como “Messias” na propaganda da “obra”. A preparação desses internos que se transformam em “obreiros” das comunidades terapêuticas com filiação religiosa começa ainda durante o tratamento. São eles, na maioria das vezes, os responsáveis por manter a casa em ordem e participar de atividades para angariar doações, como fazia Jailson quando podia sair da Fazenda da Esperança para vencer biscoitos nas paróquias do entorno da CT.
Na segunda fase do tratamento na Instituição Manassés, por exemplo, cinco meses depois de passarem pelo portão de entrada, os internos começam a ir para as ruas. Eles sobem nos coletivos, uniformizados com calça azul e uma blusa branca, com o nome da casa. Sobre os ombros, levam bolsas cheias de produtos para vender - de canetas, a porta documentos e estojos - e conseguir doações.
Ao subirem nos ônibus, geralmente em dupla, se apresentam aos passageiros e resumem a história da instituição. Ali, dão os primeiros passos para se tornar “obreiros”, nome emprestado da tradição protestante que se refere àqueles que, gratuitamente, servem à igreja, como com auxílio ao pastor e papel na rotina de atividades. Eles não vendem só produtos, mas também mostram aos passageiros uma possibilidade de tratamento a eventuais familiares.
Segundo a Instituição Manassés, esses internos são comissionados em 20% do lucro total da venda da semana. Não há vínculo reconhecido de emprego. “Faz parte do tratamento, da reinserção dessa pessoa na sociedade. Ela precisa ter a renda dela, ter vontade de continuar”, explica Emerson, supervisor da unidade de Lauro de Freitas (BA) da Instituição Manassés.
O supervisor é obreiro da Manassés desde 2004. Saiu de Viamão, no Rio Grande do Sul, para Curitiba, e de lá, para a Bahia, de onde não mais retornou - apenas para visitas. Desde então, foi auxiliar, primeiro cargo, diretor e supervisor de três unidades no país. “Não é uma coisa que temos aula, é da prática. Eu com cinco meses me identifiquei, sempre gostei de ser líder de sala, sempre ali reivindicando alguma coisa, ou brigando por alguma coisa, me identifiquei muito com o trabalho. Fiz uma análise e tomando conhecimento de ir viajando, com cinco meses já estava ali: não vou mais embora. Quando ia terminar o tratamento, disse que tinha interesse”, conta. Os obreiros, muitas vezes, moram na própria instituição. Emerson saiu de lá em 2012, para casar. A carteira de trabalho foi assinada apenas em 2015.
Nem sempre os vínculos empregatícios entre ex-internos e comunidades terapêuticas fica claro
O uso do trabalho como método terapêutico sempre foi amplamente conhecido em clínicas de reabilitação. Cabia aos internos limpar, cozinhar, costurar e ser responsável por toda sorte de trabalho. No Brasil, a Reforma Psiquiátrica, a partir dos anos 70, que instituiu os princípios da Política de Saúde Mental do país, inicia uma discussão sobre até que ponto o trabalho tinha finalidades terapêuticas, de fato. O discurso utilizado era o do trabalho como uma formar de “ocupar” a mente que, somente porque estava vazia, tinha “sucumbido às drogas”.
A perspectiva do trabalho adotada em comunidade terapêuticas também é influencia por isso, avalia Mônica Torrente, professora do Instituto de Saúde Coletiva e à frente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Saúde Mental (Nisam) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Há um lastro que foi construído para justificativa moral, para poder você não só convencer a sociedade.”
A laborterapia, como veio a ser classificado o trabalho também como método terapêutico, não é proibida. A questão são os limites do que se reconhece como trabalho, numa tentativa de mostrar aos dependentes químicos novos caminhos a seguir, e a exploração, quando a mão de obra nas comunidades terapêuticas são usadas para outras finalidades, como lucro. Segundo levantamento do Ipea de 2018, 92,9% comunidades terapêuticas praticavam a laborterapia.
Até as décadas de 70 e 80, no entanto, a crítica à laborterapia ficava reservada ao campo da clínica, que se questionava os valores terapêuticos. Só depois surgem os questionamentos numa perspectiva voltada para o social e o trabalho. “O direito ao trabalho é importante, o que está em jogo não é isso, mas usá-lo como se por si fosse terapêutico e não questionar a quem aquele trabalho está beneficiando, que tipo de relação você estabelece com essas pessoas”, diz Mônica.
A ética protestante tem relação direta com o entendimento do trabalho dentro de algumas comunidades terapêuticas, compreendimento como uma projeção do indivíduo. Há ainda uma conotação de “punir” o interno, acrescenta Mônica, como se somente a aplicação no trabalho expurgasse a dependência química, entendida não como doença, mas como desvio moral.
O trabalho nas comunidades terapêuticas muitas vezes leva à fuga de internos que se sentem explorados e chegam a denunciar abusos. O aumento do trabalho, por exemplo, foi citado por 16% das CTs entrevistadas pelo Ipea como forma de punição. Em 15 das 28 comunidades inspecionadas em 2018 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), houve menção à presença de voluntários que trocam trabalho por abrigo e alimentação. As condições contrariam a Lei nº 13.297/2016 e, por isso, foram classificadas pelo órgão como situação análoga à escravidão. “As pessoas são recrutadas, colonizadas e ocupam postos de trabalho. Há uma economia na contratação de profissionais especializados. É lucrativo”, defende Lúcio Costa, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Na saga de Bruno Gonçalves, 27 anos, interno da Instituição Manassés foram uma fuga e pelo menos cinco recaídas. Em 2011, ele pulou o muro de um comunidade terapêutica, em Natal, capital do Rio Grande do Norte, e fugiu. Conseguiu carona com um caminhão de passagem na rodovia. Dois anos depois, pediu que a mãe fosse buscá-lo, em Caruaru. Sentia saudades. Além do mais, “trabalhava muito”, como lembra, e “não melhorava”. Na terceira internação, Bruno diz estar com a “rotina mais tranquila, sem essa exploração, os caras ajudam, fazem as coisas”. Ele mal havia chegado na casa - estava no seu terceiro dia quando conversou com a reportagem - e já fazia planos para o futuro. “Rapaz, se eles quiserem, eu prefiro morar aqui, sabe? Futuramente… eu posso trabalhar aqui também”, vislumbra o rapaz, como quem se agarra ao que pensa ser uma grande chance.
Essa reportagem foi financiada pela Fundación Gabo como parte do fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas.
Comments