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Ocupação virtual: a cena eletrônica recifense em expansão

Atualizado: 23 de jul. de 2020


Arte: Gabriella Leal

Reportagem por Emannuel Bento Edição: Luane Ferraz

“Deveria ter uns drinks para as 100 primeiras gatas da fila”, dizia um dos primeiros comentários na transmissão virtual DIP ISOLATION, realizada na plataforma Mixlr, no final de março. A música introdutória era um remix de Waves, de Snakehips & TroyBoi, que convida o ouvinte para emergir em uma espécie de onda eletrônica. “Já estou sorrindo em frente ao espelho do banheiro, colocada”, compartilhou outro comentário do chat da plataforma. “Amiga, isso aí na sua garrafa é água mesmo?”, “Fumando um get”, “Passa sem empurrar, porra” eram algumas das outras interações. Às 2h, quando a dupla CyberKills encerrava a festa com um remix da faixa Coytada, de Linn da Quebrada, um usuário escreveu: “Pedindo o Uber para fugir do preço dinâmico”.


Na transmissão da DIP existia o desejo pela reprodução do que é uma festa real. Uma ânsia por experiências compartilhadas, que nasce de um sentimento de unidade entre esses participantes, algo possibilitado através da comunicação festiva. A DIP é célula de uma cena de festas eletrônicas independentes emergentes do Recife, que esperava por prosperar em 2020, mas esbarrou nas limitações causadas pela pandemia do novo coronavírus. Mais tarde, a NBOMB, outra festa dessa mesma cena, também realizou a sua “festa virtual”. Em capitais vizinhas, selos como 3001 (PB) e Level (RN) promoveram intercâmbios com esse modelo, além de sets individuais de DJs.

Festa Dip na rua Mamede Simões. Foto: Jean (@je0an)

No início do isolamento, o fenômeno das lives de artistas do mainstream causou muitas discussões no âmbito do entretenimento. Para citar um exemplo da electronic dance music, Alok iluminou os arranha-céus da capital paulista com seu mega projetor durante uma transmissão compartilhada pela TV Globo. Com um certo desgaste desse modelo, as festas virtuais geralmente se destacaram pela ausência da transmissão visual de uma persona ou pela maior interatividade entre os participantes.


Nas tradicionais transmissões do YouTube, a aba dos comentários é usada para expressar reações sobre o andamento da live, seja do repertório ou das falas do artista. Nas festas virtuais, as reações sobre o set musical dividem espaço com interações entre pessoas que se conhecem fora da esfera virtual. Esses internautas também simulam falas e comportamentos próprios de uma festa real. É algo típico de um nicho local que está em desenvolvimento.

O Mixlr, que propõe ser um rádio online ao vivo, caiu como uma luva nesse contexto. No Recife, o site também foi usado pela festa de música pop Tarantina. Outra plataforma que tem se destacou foi o ZOOM, criado para reuniões corporativas, que tem funcionado na experiência festiva. Foi nela que surgiu a casa noturna virtual Club Quarentine. O carioca DJ Omulu idealizou a Boate Zoom para realizar uma edição virtual da Arrastão, sua festa itinerante. O coletivo português Um Quarto realizou a ¼ FEST: De Quarto em Quarto, que contou com o DJ pernambucano JV, idealizador do coletivo de música eletrônica eletrônica Revérse - ele foi selecionado pela curadoria do festival recifense No Ar Coquetel Molotov.

Da rua para webesfera

Recife, uma capital globalizada, assiste a proliferação de raves desde o final dos anos 1990. Também presenciou grandes festivais como o King Festival, que aproveitou da pujança econômica do país no começo da década de 2010 para trazer grandes DJs internacionais. O que trazemos aqui, no entanto, é uma cena eletrônica independente e jovem que surgiu como espécie de ramificação de outras festas LGBT da cidade. Essa cena vem crescendo há cerca de quatro anos, com festas que buscam novas sonoridades, apresentando novidades e tentando fugir do senso comum. Os produtores e frequentadores denominam o movimento como “techno”, aproximando esses eventos de uma cultura clubber - termo usado para se referir a uma tribo social urbana que explora estéticas sonoras e visuais da música eletrônica para possibilitar um hedonismo contemporâneo.


A DIP, citada no começo, nasceu há um ano com sets inicialmente realizados na Rua Mamede Simões, point do Centro do Recife que reúne artistas, jornalistas e intelectuais da capital. Mais tarde, os produtores iniciaram uma série de edições chamada Quintas nas Ruas, com apoio do bar Boi Neon - inspirado no longa-metragem pernambucano de Gabriel Mascaro, evidenciando o teor cultura da área. O evento chegou a reunir mil pessoas em uma edição no período pré-carnavalesco.


“Nós exploramos house, disco, R&B, hip hop e um pop mais eletrônico. A galera abraçou muito a ideia da festa, pois existia um público carente dessa sonoridade aqui”, conta Vands (Vanderson Lopes), 26 anos, produtor do selo ao lado dos sócios Kaique Lopes e HB. “Penso a DIP como um rolê bem fresh, não queríamos um produto datado. Procuramos estar sempre nos realizados, entendendo os desejos da galera”.


A DIP, assim como outras células que formam essa nova cena techno, acreditava que 2020 iria ser o ano em que as coisas finalmente “aconteceriam”. A pandemia da Covid-19, no entanto, proporcionou a necessidade de reinvenção - mesmo que ainda sem uma remuneração concreta - para manter a marca em evidência a atender aos anseios de um público que enfrenta o isolamento social. Foi assim surgiu a ideia para a festa virtual. “Escolhemos o Mixlr porque poderíamos transmitir com enfoque nos sets. A ideia de ter um chat foi para aproximar as pessoas. A festa é uma interação social, mas estamos afastados. Então precisamos estar interagindo e conversando como em uma festa do futuro, uma festa online”, explica Vands.


Vands em festa Dip. Foto: Jean (@je0an)

Os produtores convidaram Cherolaine, residente da Revérse e produtora da NBOMB, e a dupla CyberKills, formada por Gabriel Diniz (PB), da Paraíba, e Rodrigo Oliveira (SP), que já trabalhou com nomes como Pabllo Vittar e Kaya Conky. O feedback foi positivo: a festa teve cinco mil acessos durante as quatro horas de transmissão, cinco vezes a mais do que a última edição física. “Para mim, esse episódio provou o quanto a cena de Recife tem se engajado. Mesmo com a pandemia, conseguimos nos reinventar, sem o apoio de marcas. E aproveitamos para mostrar a nossa marca para pessoas de outros estados, já que existe uma dificuldade de locomoção”.


Vands ressalta que a necessidade da criação de uma festa virtual também parte da própria particularidade das festas de eletrônicas, que necessitam de uma coletividade capaz de elevar o indivíduo para “outra atmosfera”. “É um tipo de gênero que nos ajuda a construir um universo fora realidade, diferente de cenas como a do sertanejo. O eletrônico pode ser muito fresh, misturando música, moda e estilo de vida. O techno é muito uma expressão do que você é. Da sua roupa, da sua performance. Isso causa uma paixão nas pessoas”.

Por um techno queer
Cherolaine em festa Nbomb. Foto: Uhgo (__uhgo)

Se a DIP Festa usufruiu do ar livre urbano para constituir sua potência, o selo NBOMB se destaca por festas em ambientes fechados, com iluminação soturna e performers que constroem uma atmosfera queer. A vertente eletrônica é, de fato, o techno - ritmo essencialmente dançante, acelerado e com menos variações de melódicas que surgiu em Detroit na década de 1970. A festa é encabeçada por Cherolaine (nome artístico de Vic Chameleon), já realizou cinco edições na capital pernambucana. “Eu vejo a NBOMB como um local de acolhimento, de evidência dos nossos corpos e apreciação da cultura queer”, diz a produtora, DJ e modelo.


De acordo com a produtora, a NBOMB ganhou destaque em julho de 2019, com uma edição realizada após a exibição no Cinema São Luiz do curta-metragem Frervo, de Thiago Santos e Libra, que aborda justamente sobre essa cena techno. A festa foi no Miami Pub, que funciona como espaço de experimentos do “completo noturno” de Maria do Céu, empresária responsável do Clube Metrópole, boate LGBT mais duradoura do Recife. A line contou com Carol Mattos, do coletivo paulista Mamba Negra. O êxito foi tamanho que a edição seguinte se mudou para pista principal da Metrópole, um espaço simbólico para a música eletrônica na cidade.

Equipe do filme FRERVO no Cinema São Luiz. Foto: Divulgação

A primeira festa virtual da NBOMB ocorreu em 3 de abril, também no Mixlr, com line up formado por Cherolaine, Libra, Pepapuke, Paulete e L_cio (SP). A live contou com 3 mil ouvintes, o que estimulou uma segunda festa em 12 de abril, com 10 DJs em 12 horas de transmissão. Entre os nomes, estava Valentina Luz (SP), Carol Schutzer (SP), da Mamba Negra, e Omulu (RJ), conhecido por unir ritmos brasileiros com batidas pesadas, tendo colaborado com Elza Soares e BaianaSystem.


“A festa virtual foi tudo porque pela primeira vez conseguimos ser ouvidos por outros estados. Acompanhamos até pessoas de fora do Brasil ouvindo. Também tinham DJs de São Paulo, Belo Horizonte e do Rio de Janeiro na line. Foi algo que propagou o nome da festa mesmo com o setor cultural paralisado”, diz Vic. “Mantendo nosso nome em evidência, acredito que podemos voltar com tudo, bem mais fortes”, pontua, sobre o pós-pandemia. “Quando demos essa pausa, estávamos em um auge. A cena daqui está se levantando e caminha para um movimento eletrônico independente do Nordeste. O público tem se expandido, captado mais pessoas, inspirando novos artistas”.

Intercâmbios virtuais
Libra. Foto: Jean (@je0an)

Libra, 22 anos, é produtora da festa Escapa, um selo recifense focado em música eletrônica afro latina, ao lado da artista audiovisual Anti Ribeiro. Ela também é DJ residente da Batestaca, recente projeto eletrônico do Som na Rural, e da festa NBOMB. Foi com esta última que Libra fez a sua estreia em festas virtuais, no início de abril. “Foi bem estranho”, resume, sobre a experiência de apresentar o set no Mixlr. “Primeiro deu uma sensação de nervosismo por ser algo novo. Mas me senti apreciada online (risos). Foi bem no começo da quarentena, quando estavam todos ansiosos por poder consumir entretenimento em plataformas”.

No período pré-pandemia, a Scapa realizou apenas uma edição, o que estimulou a busca de projetos voltados para a internet. Uma alternativa foi o Contracor, uma programa de rádio online que busca proporcionar diálogos com artistas negros do Brasil. O projeto ainda está em processo de idealização e deve ser lançado em breve. “A proposta é conversar com artistas, mas não em uma função de entrevista, mas sim em uma função de troca artística”, explica a artista. “No geral, a ideia é continuar movimentando a cena. Para coligar cenas eletrônicas inicialmente, mas não apenas essa cena”.

Libra e Anti em festa Scapa. Foto: Jean (@je0an)

Desde o início do isolamento social, Libra tem sido convidada para se apresentar em festas virtuais de outros estados, a exemplo de A Trita (Fortaleza), Fissura (BH) e Coriza (SP), selos que têm realizado festas virtuais em plataformas como Mixlr ou Twitch.TV. Ela também tocou no extenso festival Hyperpop, idealizado pela dupla CyberKills com transmissão no Twitch, que chegou a contar com a participação de Linn da Quebrada, Jup do Bairro, Aquaris, vencedora da 10ª temporada de RuPaul’s Drag Race, e mais.


“Acho que o período de isolamento têm forçado um intercâmbio artístico, nos faz conseguir falar com artistas que em outro contexto essa ponte não ocorreria. Ao mesmo tempo, é complicado porque ainda não temos rentabilidade”, desabafa. A DJ cita o exemplo do festival Marsha! Entra na Sala, realizado pela recifense radicada em São Paulo Ana Giselle (conhecida pelo nome artístico Transalien), como um exemplo de projeto que conseguiu remunerar toda a produção. “Ainda existe, no entanto, uma agonia frequente que é como conseguir continuar fazendo dinheiro. Os grandes artistas das lives conseguem ter um diálogo com as marcas. Mas como nós vamos continuar nos movimentando, até conseguirmos uma maneira de subsidiar?”.


Post de Libra no instagram

Enquanto o espaço virtual funciona como um escape, o futuro é incerto. Como será o pós-pandemia para esse techno ascendente? “Algumas pessoas já me fizeram essa pergunta”, diz Libra. “Mas é louco porque não sabemos o que está acontecendo ou como isso vai acabar. Existe a possibilidade de que as festas voltem, mas com restrições. Então não sabemos o que vai ser um evento no pós-corona. A aglomeração afetiva é tão importante nesse processo. Eu espero que voltemos com força, mas tudo ainda é muito turvo”, finaliza.


A experiência eletrônica

Thiago Neves, professor do Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, realiza pesquisa sobre música eletrônica (sobretudo sobre os eventos) há 16 anos. “O conceito sobre festa eletrônica, seja de ravers ou de clubbers, é baseada na experiência eletrônica. Você lida com uma música essencialmente tecnológica, que tem tudo a ver com o nosso tempo. Estamos cada vez mais dependentes de máquinas. Sendo assim, uma festa virtual é uma festa de música eletrônica. A plataforma digital nos leva à origem da própria música eletrônica, que foi criada com os sintetizadores. Então não existe casamento melhor. Talvez, a música eletrônica nunca esteve tão em casa”, opina Thiago.


“Eu li uma entrevista com o DJ Omulu e ele disse que, enquanto fazia uma apresentação na plataforma Zoom, todo mundo se levantou quando tocou Rajadão, de Pabllo Vittar. Também vi que abriu uma festa drive-in, onde o DJ fica tocando em uma tela de cinema e as pessoas ficam em seus carros. Ou seja, é uma configuração de estar junto nessa experiência eletrônica. Não é sobre uma plataforma original, mas sim sobre a experiência”, continua.


Thiago ainda menciona que esse gênero musical consegue traçar uma espécie de paradoxalidade entre o arcaico e o contemporâneo. “A necessidade da música é uma necessidade humana de socializar, comunicar e demonstrar afetos. A música eletrônica traz isso consigo, ao mesmo tempo que atravessa a tecnologia. O foco, no entanto, sempre será a música. Sem ela não existe beijo, não existe dança, não existe nada”, conclui.


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