Reportagem: Matheus Rangel
Aos 11 anos, o filho mais velho de Kika confessou que não se sentia atraído por meninas. A única reação da mãe foi abraçá-lo e dizer: “Se você tá feliz, eu tô feliz”. Aos 15, revelou o desejo de usar roupas femininas, deixou crescer os cabelos e escolheu seu nome dali em diante: Kaylane. “A partir daquele momento, não saí mais de casa pra comprar roupa de menino, só de menina. Eu tinha uma filha”.
Kaylane Machado deixou Salvador, onde nasceu e cresceu, para viver em Belo Horizonte poucos meses antes de completar 18 anos. Levou algumas malas com poucas roupas e três sonhos: conseguir pagar um curso técnico de enfermagem, colocar próteses de silicone nos seios e retificar seus documentos para o nome feminino. Não conseguiu realizar nenhum deles antes de ser assassinada quatro anos depois, quando tinha apenas 21.
Poucos dias antes da mudança, a jovem deixou claro que não queria uma grande despedida e fez questão de ser acompanhada apenas pela mãe ao aeroporto. Cleiniceia Machado Régis, ou Kika, como é conhecida, até então apoiava a filha na empreitada, mas sentiu o coração apertar quando foi chegando hora do embarque. “O que uma passa todos passam. Fique com a gente, você não precisa ir”, pediu. Não adiantou, e aquela foi a última vez em que as duas se abraçaram.
Kika nunca teve dinheiro para ir visitar a filha e Kaylane nunca pôde retornar a Salvador, como prometido. O plano era passar tempo suficiente na capital mineira apenas para arrumar um emprego, começar a estudar e juntar dinheiro para comprar um puxadinho de quarto e sala na Bahia, junto da família. Mas Kaylane nunca voltou.
“Era eu e ele e mais ninguém”
O gesto de acolhimento de Kika para com Kaylane na infância, ainda raro entre famílias das pessoas LGTBQIA+, sacramentou uma cumplicidade que transcendia a relação maternal. As duas se tratavam como irmãs, saíam juntas para festas e gostavam de dividir os fones de ouvido para dançar sozinhas em casa. Durante o silêncio da madrugada, passavam horas conversando e se aconselhando.
“Era aquela coisa, uma relação não só de mãe e filho, mas de amizade, fraternidade. As pessoas olhavam pra gente, porque eu tive filho muito cedo, e quando ele ainda se vestia de menino achavam que era meu irmão. A gente brigava e discutia, dizia ‘não falo mais com você’, e depois voltava. Quando apertava pra mim, ela me ajudava”, conta Kika.
São João era a festa preferida das duas, quando saíam “pra resenha”. Hoje, Kika não celebra mais a festa. “A gente se entrelaçava, era eu e ele e mais ninguém. Nem meu marido entrava no meio. A gente bebia até virar o dia, dançava todo tipo de forró e música. A mesma coisa era com maquiagem, até hoje uma mulher de 40 anos que não sabe se maquiar porque ele que me maquiava pra qualquer coisa”, lembra.
Com Emily, a irmã mais nova de Kaylane, a relação de amizade era a mesma. Entre os amigos, eram conhecidas como “a loira e a morena” quando saíam “pra piriguetagem”. Dividam shorts, blusas e saias, trocavam dicas de cuidados com os cabelos e maquiagem. “A gente adorava sair as três, elas duas e eu”.
Durante os quatro anos em que ficaram separadas, mãe e Kaylane mantiveram contato todos os dias pela internet. As chamadas de vídeo e mensagens de texto serviam para atenuar a distância física imposta entre duas pessoas tidas como inseparáveis. Apesar da saudade, viajar era economicamente impossível.
“O financeiro é bem apertado quando a gente tem muito filho, trabalha com o salário de miséria que é o Brasil. Só um salário pra sustentar todo mundo, mesmo com toda ajuda. Era difícil ir visitar, ele quem me ajudava muito financeiramente também”, relata Kika.
Desempregada há dois anos, desde que precisou sair do restaurante onde trabalhava como assistente de serviços gerais, a mulher é responsável pelo sustento da casa onde criou seus oito filhos - “Eu tenho oito, não consigo dizer que são sete. É como se um ainda tivesse viajando”. Os dois mais novos, Izabelly e Enzo, não chegaram a conhecer a primogênita pessoalmente. Por isso, uma foto dela é mantida no meio da sala de estar para preencher a sua - agora permanente - ausência.
Wellington, marido de Kika, nutria pela enteada um “amor roxo”. Conversavam frequentemente, davam risadas juntos e andavam até de mãos dadas. “Tiravam onda juntos, ele chamava ela de ‘minha mona’ e às vezes nem me incluíam, iam sozinhos beber. Foi uma das pessoas que ficou mais sem chão, mas foi quem mais me deu força pra estar em pé hoje porque a minha vontade foi me jogar ali da passarela na frente de onde a gente mora”. Wellington faleceu de um mal súbito enquanto jogava futebol no final de 2020, deixando Kika viúva.
“Meu Deus, minha mãe”
Na madrugada de 21 de setembro de 2017, Kika recebeu a ligação que preferia nunca ter atendido: soube que a sua filha mais velha havia sido assassinada a tiros em Belo Horizonte em uma briga na rua, sem suspeitos identificados pela polícia.
Viajou de avião pela primeira vez com a triste finalidade de identificar o corpo da filha só 14 dias depois do crime, graças à ajuda do Grupo Gay da Bahia, organização não-governamental que é pioneira na luta pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ no Brasil e arcou com os custos. No IML, Kika viu outros corpos de travestis, também jovens, também assassinadas, esperando por alguém para identificá-las.
Precisou enterrar Kaylane na capital mineira, longe da família e de casa: “Essa foi a maior dor da família, que já não via há tanto tempo, ter que sepultar lá, terra dos outros, terra estranha. Eu até hoje não consegui entender direito, disseram que era caro e depois que ia demorar muitos dias. Eu tava muito nervosa, então as coisas ia fazendo como as pessoas que tavam ao meu redor me orientavam, eu comia porque as pessoas me empurravam. Nem dormir eu dormia, só pedia a Deus que pudesse enterrar meu filho. Que não fosse enterrado como indigente”.
Sem os documentos retificados a tempo, Kaylane foi sepultada oficialmente sob o nome masculino, apesar do cuidado da mãe de vestir-lhe o seu vestido preferido e pedir que a maquiassem como ela gostava.
A versão oficial da polícia registra que a morte foi motivada por uma briga por um ponto de prostituição. Até hoje, a verdadeira causa do crime não ficou clara para Kika: “É o que eles dizem porque eles não querem se comprometer. Você sabe que a policia, por ser travesti, trans, lésbica, eles tão pouco se importando, principalmente porque não era de lá”.
Já segundo as amigas mais próximas de Kaylane, que chamam Kika de mãe, a jovem teria morrido ao tentar defender uma amiga, também baiana, que supostamente estava sendo agredida por conta de uma dívida. Fato é que a amiga conseguiu correr e sobreviveu, mas Kaylane tropeçou na fuga. Ao cair, gritou “Meu Deus, minha mãe!” antes de ser alvejada por tiros disparados por um homem. O momento foi filmado e enviado às autoridades, que tentaram mostrar as imagens a Kika. “Não aguentei ver até o final”, disse ela.
A mãe nunca mudou de número de celular na esperança de receber algum contato da polícia com novidades sobre o caso. Nunca soube de mais detalhes: “Eu me sinto como se tivesse sido mãe de cachorro. Acho que até o bicho tá tendo mais resposta que o ser humano, me sinto mãe de um bicho sem dono. Porque nem as autoridades, nem a polícia, nem o governo, nem a prefeitura, que todos estavam no sepultamento dele, me deram notícia. Eu esperando sempre e nada. A única coisa que chegou aos meus ouvidos é que é assim mesmo, que travesti quando morre demora anos, à polícia pouco importa. Mas se fosse um hétero, até que eles poderiam tá em cima. O preconceito imperando”.
Unida, a família sentiu o impacto da notícia. Um dos irmãos, Kaio, então aos 14 anos, foi parar no hospital. Wellington, o padrasto, desmaiou. “Naquele momento até hoje eles mutilaram minha família. O primeiro neto da minha mãe, meu filho mais velho, era o chamego de todo mundo, independente da opção sexual”, reflete Kika. Se a relação das duas era de amizade, a de Kaylane com os demais irmãos era de autoridade: “Ela quem botava eles nos trilhos, era duro com eles. Quando morreu, eles se perderam”.
Ela diz estar cansada de entrar em brigas para defender pessoas LGBTQIA+ porque não aguenta ver o preconceito. Culpa, dentre outros fatores, o presidente Jair Bolsonaro pela disseminação do preconceito.
“Ele é ridículo. Aquele ali é pobre de espírito, não vai ver meu voto nem pra ele nem pra raça nenhuma dele. Sinceramente, eu não vi que mudou muita coisa não. Só lei de faz de conta. Continua a mesma coisa, o preconceito pocando, explodindo a boca, não só com homossexual, mas racista também”, comenta.
Também costuma discutir com mães que resistem em aceitar seus filhos e suas filhas por questões relacionadas à sexualidade e à identidade de gênero: “Já falei muitas vezes pra algumas mães que eu conheço e falo pra todas do mundo. Eu digo: ame. Independente da mudança física que você como mãe vai ver, se você pariu um menino e vai se transformar em uma menina, seu sangue, coração e carne tá ali. Porque no dia que se perder, você vai sentir o quanto dói. Amei e amei até o último momento da vida dele, onde quer que ele esteja eu amo meu filho, pra essas mães, a única coisa que eu desejo: ame, apoie, aceite. Porque se a gente não fizer isso achando que é ruim, lá fora vai ser bem pior”.
Kika repete que segue a vida pelos filhos que ficaram. “Hipertensa e depressiva”, como se define, enxerga Kaylane na continuação da própria família. Dois netos estão por vir, um menino e uma menina. O menino se chamará Kayque (nome de batismo da filha mais velha) e a menina, Kaylane.
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