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Racismo ambiental e primeira infância: como o Estado afeta o direito de brincar das crianças periféricas

Atualizado: 6 de jun.

Por Martihene Oliveira*


As mazelas do racismo ambiental que afetam as gerações da favela


Ilustração: Luca Delmas


Nos últimos 5 anos, Pernambuco ficou em primeiro lugar no número de buscas por deslizamentos de barreira, sendo Recife a cidade mais preocupada. Abaixo dele, Rio de Janeiro e São Paulo.


– Ô tiaaaa… Tira minha foto!


Falou Andrezinho, sete anos, irmão de Arielle, de dois, e de Ayla que ainda está na barriga. Andrezinho é o menino mais serelepe que o Coletivo Sargento Perifa já conheceu. Vizinho à sede do veículo de jornalismo independente da comunidade do Córrego do Sargento, em Linha do Tiro, zona norte do Recife (PE), ele está presente em todos os 20 projetos oferecidos à comunidade. Quando ele não está, sua mãe, Raquel, ou sua avó, Neide, estão. 


Passeando com ele de Uber, enquanto nos dirigíamos para o local onde seria a gravação do podcast desta reportagem, a gente foi observando a rua. Saímos de Linha do Tiro, bairro da zona norte com quase 15 mil habitantes, e cruzamos Casa Amarela, depois Casa Forte, Torre, Madalena, Caxangá, até chegarmos no Cordeiro. Do subúrbio para os bairros chiques, muita conversa rolou: 


— Tu gosta do Córrego, André?

— Gosto.

— O que tu mais gosta de fazer lá?

— Brincar. Brinco de um bocado de coisa. De pega se esconder, pega congelou, jogar bola, depois eu saio com meus amigos.

— Tua mãe deixa tu brincar na rua, né?

—Deixa. Ela só diz pra eu ter cuidado pra não ser atropelado pela moto.



Comunidade do Córrego do Sargento, Linha do Tiro


O Córrego do Sargento é uma comunidade com mais de 250 famílias, cheia de becos estreitos, canais de esgoto e gente preta, localizada em Linha do Tiro, bairro da zona norte do Recife com quase 15 mil habitantes. Nesse bairro, 70% da população é negra. Há boatos que dizem que já foi um quilombo. Eu não sei ao certo se essa história é verdade mas não duvido muito não. Que o bairro já foi o engenho de um tal de Major Antunes, isso eu já sei, mas sempre tive curiosidade sobre o percurso e nome da Subida da Medalha Milagrosa, por exemplo. Uma outra questão que me pega é a quantidade de morros e escadarias. Tem escadaria pra tudo quanto é gosto, que levam a lugares muito altos. 


Nas partes baixas de Linha do Tiro, há constantes alagamentos. Já quem mora nos altos, corre o risco de ver suas casas despencarem. Durante a tempestade que assolou o Recife e sua região metropolitana em 2022, a última morte foi em nosso bairro. A rua estreita Professor José Amarino dos Reis, que corta pelo Córrego do Tiro, foi interditada, permitindo apenas a passagem da Defesa Civil e da imprensa. Nessa ocasião, Lucas, um menino negro de 13 anos, foi assassinado pelo Estado. A barreira que segurava a casa onde morava sua família cedeu, levando-os junto. Dona Neide, mãe de Lucas, conseguiu salvar o filho mais novo. De lá pra cá, a prefeitura pavimentou o local. Do outro lado, lonas abafam o medo e o descaso até se derreterem novamente e em meio ao mato que cresce no barro, serem cobertas de novo. É assim desde que o bairro de Linha do Tiro é feito por gente, e os moradores são uma mostra das mais de 1 milhão de pessoas de Pernambuco que vivem em áreas vulneráveis em relação às mudanças climáticas, segundo um levantamento realizado pela Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, vinculada ao Ministério da Casa Civil em relação aos anos de 2021 e 2022.


Dias após a morte de Lucas, a família que mora na barreira em frente à tragédia estampou um banner amarelo com um pedido de socorro: “Prefeitura do Recife, será que também vamos ter que morrer pra que a barreira daqui seja feita?” Pouco mais de 1 ano, 8 famílias recriam um cartaz maior. Por coincidência ou não, o amarelo e vermelho, cores do PSB, partido da gestão municipal atual, estampam os gritos silenciados pelo povo. 


Foto: Naftali Sabino/Sargento Perifa


O racismo ambiental é isso aí, um descaso coberto com lona, onde todo mundo vê mas não vê, e a gente sabe que ele só mata quem geme. No ano da tragédia, a Prefeitura do Recife havia executado em 9 anos apenas 17% do que era previsto para a prevenção de danos nas chuvas.


Coisa que me faz refletir sobre o tempo em que a gente não é visto. Desde 1970 tem registros de mortes por deslizamentos narrados pelos moradores. Desde 1891 o Recife tem prefeito, desde 1887 Linha do Tiro já existia. O Córrego do Sargento não está nos relatos oficiais da história. Por muitos anos, moradores de comunidades vizinhas chamavam a comunidade de “Córrego do Cocô” por causa da quantidade de fezes e de esgoto a céu aberto com meninos magrinhos e descalços que andavam carregando uma barriga enorme. 


Dizem que por lá já houve uma fábrica de sapatos e também tinha um campo gigante, com o pé de manga que não se podia comer porque Dona Carmelita, dona do terreiro que ficava ao lado, dizia que a manga era do santo. Hoje, a comunidade não tem nada. Apenas uma igreja evangélica e a sede do Coletivo Sargento Perifa. As mais de 300 crianças do território acessam parques, escolas e creches em outras localidades e isso também acontece com o posto de saúde. 


A ausência de um espaço para as crianças de hoje brincarem é a saudade das crianças de ontem e de antes de ontem também. O que Andrezinho e sua irmã não desfrutam hoje, sua avó desfrutou no passado. Para ela, o único ponto de respiro acabou e o lamento é o mesmo do Seu Djalma que também já jogou bola no campo. Sumiu o campo, a bola, a mãe de santo, o pé de manga e as gargalhadas.


Não é por acaso que o campo que falta para o idoso de 70 anos, o homem de 38 e a criança de 7, deu espaço a perguntas sem resposta e se replicam em milhares de brasileiros sobretudo em época de chuvas, quando acionam as plataformas de busca e procuram por deslizamentos de barreiras. 



Ilustração: Luca Delmas


Primeira Infância e o cenário das crianças periféricas


Primeira Infância é a fase entre 0 e 6 anos da criança, o período onde tudo começa. Segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, “é a janela em que experiências, descobertas e afetos são levados para o resto da vida”. Já o racismo ambiental é a violência aplicada pelo Estado aos territórios periféricos impossibilitando o acesso de habitantes desse espaço a direitos básicos como água potável, tratamento de esgoto, energia elétrica, moradia digna, ar puro e outros direitos. Em geral, lugares como esses são escolhidos a dedos para depósitos de lixo, por exemplo, e  por motivos como esse, são os mais vulneráveis a outras mazelas como o alto índice de violência urbana que vitima pessoas pretas e periféricas postas nesse espaço de abatedouro e mortos diretamente pela ação humana ou pelos desastres ambientais causados por ela. 


Se tratando da primeira infância, o Observatório da Criança e do Adolescente apontou que no ano de 2023, 46,5% das crianças dessa faixa etária no Brasil viviam em situação de baixa renda; em Pernambuco, que  possui mais de 1 milhão de pessoas em situação de vulnerabilidade, o percentual foi de 55%. 


Segundo o Censo do IBGE, em relação ao ano de 2022, pessoas pretas, pardas e indígenas foram as mais atingidas pelas privações de recursos e direitos no Brasil, entendendo que quanto menor a renda maior a vulnerabilidade, sobretudo em relação aos efeitos das mudanças climáticas. Os dados do Observatório da Criança e do Adolescente também apontaram que para cada 100 mil habitantes do país, 4,7 crianças entre 0 e 4 anos de idade foram a óbito relacionados a fontes de água, saneamento inadequados e falta de higiene, segundo grupos etários e limites geográficos. Pernambuco, de novo, ocupou uma taxa maior que a nacional, com 5,7 crianças mortas por direitos básicos negados antes de chegarem aos 5 anos de idade. 


O Racismo ambiental é isso e mais outros problemas que acontecem em territórios periféricos, quilombolas, ribeirinhos e indígenas. No Córrego do Sargento, ausente de creche, posto de saúde, escola, parque e água na torneira, por exemplo, um total de 300 crianças entre 0 e 11 anos de idade estão em território vulnerável. Foi por causa disso que eu, Martihene Oliveira, jornalista de favela, como gosto de me apresentar, diante de alguns deslizamentos de barro e autoestima já presenciados na comunidade, dividi a construção dessa reportagem com as jornalistas Ana Roberta Amorim e Eduarda Nunes. 


Todas as crianças abordadas são do Córrego do Sargento, comunidade onde atua o Coletivo Sargento Perifa. O crime ambiental que matou 142 pessoas e deixou mais de 128 mil pessoas desabrigadas na RMR, me aterrorizou com a lembrança do desastre de 2010, que matou a família de Carol, levando ao óbito suas três irmãs pequenas, sua mãe e seu padrasto.


O Sargento Perifa foi levado a noticiar os relatos das comunidades vizinhas. Na Vila Vintém, comunidade que fica às margens do Rio Beberibe, localizada também na Linha do Tiro, a água passou do pescoço de muita gente. Na comunidade do Rio Morno, onde o mesmo rio transbordou, mais de 250 famílias, entre elas gestantes e crianças, ocuparam a Escola Municipal Paulo VI depois de uma resistência nada igual à nossa, apresentada pela então recém chegada diretora, que não autorizava a abertura dos portões com medo de sofrer alguma rebordosa.  No bairro de Santo Amaro, localizado na área central do Recife, a comunidade do Canal da Vovozinha estava em desespero. É que com qualquer chuva que aparece por lá, ele transborda, alcança o piso de madeira das palafitas que apodrecem aos poucos e quando as pessoas menos percebem, elas caem dentro da água podre por causa do piso que cede.  O mesmo problema era encontrado na Favela do Condor, que fica entre Recife e Olinda, onde Maria, mãe solo, junto a outras mulheres organizou os moradores para se salvarem da grande cheia que arrastou seus animais de estimação, casas e enxovais de bebê. A estratégia dos moradores dessa comunidade foi a de colocar uma escada por baixo da Ponte do Cimento, único local que dava para sair, e subir primeiro as crianças, idosos e gestantes, depois as mulheres e os homens. A comunidade da Av.  Sul, localizada no bairro de São José, manteve os moradores e suas casas restritos à linha do trem, até que a água baixasse.


Seu Djalma e a lembrança do desastre na comunidade


Seu Djalma , de 70 anos, não tem tempo para entender o que é racismo. Para ele, racismo é uma coisa ruim. Com metade da idade dele, eu sei que há muitas coisas ruins no mundo, mas, hoje entendo que o racismo é a pior delas.  Talvez seu Djalma tente colocar todas as dores em um único recipiente e deixá-lo no cantinho de seu quintal, junto com a caixa de ferramentas e todas as coisas que aparecem na sua rotina, mas que não precisam ser usadas agora porque talvez só sejam úteis depois. 



Ele testemunhou o primeiro deslizamento de barreira do Córrego do Sargento na década de 70, que matou 8 pessoas. Em 2010, outra tragédia climática ocorreu e o aposentado foi quem liderou os moradores na busca pelos corpos de Laodicéia, seu companheiro e suas três filhas de 2, 9 e 12 anos, à noite, no meio do barro e sem eletricidade.


Cinco lençóis cobriram as vítimas do descaso e do racismo. Eu sempre lembro das meninas magrinhas que corriam pelo Córrego do Sargento. A dúvida se era só apenas elas das cinco filhas de Laodicéia que estavam no meio do barro. O silêncio dos moradores para ouvir os gritos, as lanternas ligadas, o choro, o barro, a chuva, a lama, o amontoado de gente emudecida, a tristeza. Carol, filha mais velha, estava com 13 anos, grávida de seu segundo filho, ouviu o barulho da morte de sua casa.


|”Em breve vou comprar um carro para poder socorrer o povo a tempo. Já socorri muita gente, vítima de bala e de tudo quanto é coisa. Às vezes é a maior agonia pra fazer isso porque não tem carro. Até no carro de mão a gente já socorreu gente aqui”, disse Djalma.


A primeira infância dos netos de Seu Djalma, Andrezinho, Arielle e Ayla que ainda está para nascer, passa longe de ser a ideal. Segundo a jornalista e pesquisadora Mayara Penina, “uma criança tem direito a brincar quando ela consegue brincar livremente sem barreiras e obstáculos. Acho que tem alguns obstáculos que as crianças brasileiras enfrentam nas grandes cidades, por exemplo, muitas crianças têm um problema da violência urbana, então, na maioria das vezes os espaços não são seguros para que as crianças saiam de casa e brinquem livremente ou quando sai tem uma questão de zeladoria, de conservação dos equipamentos públicos em algumas áreas de algumas cidades. E aí muitas vezes, nem tem uma pracinha, uma área verde, espaços naturais que as crianças possam brincar”. 


A morte de Lucas, em 2022, ecoa as tragédias enfrentadas por famílias nos anos 70, no Córrego do Sargento, e em 2010, no mesmo território. A pergunta persistente é: por que somente em 2023, quase 60 anos depois, a barreira de Rosa, a mesma que causou fatalidades nos anos 70, matando 8 pessoas e destruindo diversas casas, está sendo pavimentada?


— Eu queria morar aqui, tia.

— Por que? Aqui tem prédios, tu gosta de rua. Nem vai poder brincar na rua.

— Mas eu vou ter uma sala massa e poder brincar bem muito na sala porque ela vai ser muito grandeeeee.


Este é o primeiro capítulo da série de reportagens Racismo Ambiental e o direito de brincar das crianças periféricas do Recife, uma realização da Retruco com o Coletivo Sargento Perifa. Confira também o episódio desta reportagem no Perifa Cast - podcast do Coletivo Sargento Perifa.



Esta reportagem integra o edital para a Bolsa de reportagem “O papel do jornalismo antirracista na proteção de crianças negras e periféricas, ação do Nós, mulheres da periferia, em parceria com Marco Zero Conteúdo e Alma Preta Jornalismo - apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal

 Um laboratório de jornalismo, criado por comunicadores do Nordeste, que se propõem a trazer o protagonismo as narrativas da região a partir de um ponto de vista questionador.

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