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É urgente uma visão crítica sobre estatísticas (não só na saúde)


Fonte: Unsplash

Coluna por Renan Araújo


Estatísticas se tornaram assunto comum ao público no contexto do coronavírus e vêm gerando muitas discussões. A familiaridade do público com o tema vem aumentando na medida em que determinadas formas de medir os índices de contágio do vírus vão se aperfeiçoando. Quantidade de casos registrados, quantidade de mortes por covid-19 confirmadas, média móvel dos últimos sete dias, projeções: todos esses métodos possuem pontos fortes e fracos. Há vários dados sobre coronavírus e várias formas de se falar deles, cada um fornecendo uma visão diferente da situação. A pandemia trouxe à tona um problema que transcende o campo da saúde: a necessidade da análise crítica de estatísticas.


Após seguir um mesmo padrão por anos, os dois termos tiveram um pico de procura entre março e abril deste ano, quando a pandemia estourou no país. Fonte: Google Trends.

A importância de saber que o que se mede está relacionado com as perguntas que se quer responder é fundamental para todos os campos, desde educação, moradia e relações internacionais até segurança pública, sobre a qual irei falar neste texto. Essa relevância levou o matemático norte-americano Samuel S. Wilks a prever em 1950, fazendo uma referência imprecisa a H. G. Wells, que “Um dia, o pensamento estatístico será tão importante para uma cidadania eficiente quanto a habilidade de ler e escrever”. Terá esse dia finalmente chegado?

Nesta coluna, trarei dois exemplos sobre como a pandemia tem evidenciado que o pensamento estatístico é fundamental para uma segurança pública eficiente. Sem ele, políticas públicas podem ser desenhadas equivocadamente, virando as costas para fenômenos importantes que poderiam virá-las de ponta-cabeça se tivessem sido considerados. Da mesma forma, o público precisa do pensamento estatístico para ter as ferramentas necessárias para requerer reformas efetivas; caso contrário, fica relegado a intuições e desejos muitas vezes irracionais (cloroquina manda um alô).

Os exemplos que trago mostram que a forma como falamos de estatísticas possui gênero e cor – e, espero, ensinarão ao leitor o básico da interpretação de estatísticas criminais.

O caso da violência doméstica

Há diversas formas de medir crimes, mas a principal no Brasil é o número de notificações que a polícia recebe. Como toda estatística, ela possui prós e contras. Os prós incluem a praticidade e o baixo custo, já que basta aproveitar os registros de crimes que as polícias naturalmente já mantêm. O principal lado negativo é a subnotificação: a polícia não é informada de todos os crimes que acontecem, seja porque muitos são tratados como desimportantes pela população, seja porque há uma falta de confiança entre o público e a capacidade de resolução de problemas da polícia, ou por várias outras razões. Isso significa que os dados sobre crimes registrados pela polícia não podem jamais ser tratados como a quantidade de crimes total que acontece. Ou seja, fazer referência a “roubos diminuem” ou “estupros diminuem” ao invés de “roubos notificados à polícia diminuem” é um equívoco de pensamento estatístico que pode levar a graves consequências, como veremos.

A pandemia tem ocasionado várias alterações nas estatísticas criminais. Primeiro, a redução de crimes de forma geral, já que há menos interações e conflitos devido ao isolamento. Segundo, a redução na notificação de crimes à polícia. Esses dois fenômenos se confundem e considerar somente a estatística policial leva a erros sobre o que está realmente acontecendo.

De acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as notificações de crimes como lesão corporal dolosa decorrente de violência doméstica chegaram a cair mais de 20% em diversos estados, como Mato Grosso e Ceará. Outros registros policiais relacionados a violência doméstica, como ameaças, estupro e estupro de vulnerável, também caíram consideravelmente em diversos estados.


Outras estatísticas oriundas das polícias, como a quantidade de ligações feitas ao 180, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, também caíram. Em resumo, as estatísticas policiais indicam que há uma queda substancial na violência contra a mulher. Contudo, o que está ocorrendo de fato é um aumento na subnotificação.

De forma criativa, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública recorreu a dados oriundos do Twitter para analisar o que as estatísticas policiais não conseguiram alcançar. Em parceria com a Decode, foram coletadas 52 mil menções a brigas entre casais entre fevereiro e abril. Essa amostra foi filtrada para os casos em que violência doméstica estava expressamente descrita, resultando em 5.583 menções. Geralmente, são tweets de vizinhos relatando brigas de casais nos arredores de suas residências em que os gritos das mulheres e as agressões dos homens são altas o suficiente para serem ouvidas.



Ao cruzar esses dados das redes sociais com o aumento nos feminicídios, cuja subnotificação é menor (afinal é quase impossível esconder um corpo), e com a dedução de que a violência doméstica tende a aumentar caso haja mais interações entre os casais, que agora estão isolados dentro de casa e com maior pressão financeira devido à crise, chega-se à conclusão de que, na realidade, a violência doméstica tem aumentado. Ou seja, não só as estatísticas policiais são insuficientes, como levam a erro o leitor desavisado.

O caso da subnotificação racial

Nem sempre é possível ou adequado recorrer a dados de redes sociais para confrontar as estatísticas policiais. Contudo, há outros métodos mais sofisticados de coleta de dados sobre crime que buscam suprir as limitações das estatísticas policiais. O principal é a pesquisa de vitimização.

Pesquisas de vitimização perguntam diretamente a uma amostra representativa da população quais crimes essas pessoas sofreram nos últimos 12 meses. São pesquisas longas, com dezenas de perguntas sobre os mais diversos crimes e que geralmente incluem também perguntas sobre sensação de segurança, opiniões sobre o bairro, percepção sobre instituições, dentre outras. A ideia é pintar um quadro mais completo sobre vários fenômenos importantes que influenciam o que falamos sobre crime. Apesar dos aspectos negativos de ser longa, custosa e muitas vezes chegar a conclusões insatisfatórias para o governo (como a de que as pessoas não confiam na polícia), a pesquisa de vitimização tende a ser mais estável (pois não é afetada pelas mudanças nos métodos de registro de crimes da polícia ou de definição de crimes), mais completa e contribuir substancialmente com a redução do problema da subnotificação (que é seu principal objetivo).

A primeira e única pesquisa nacional de vitimização realizada no Brasil data de 2013 (houve outras esparsas com menor alcance). Foi encomendada pelo Ministério da Justiça e coordenada pelo Datafolha e pelo CRISP/UFMG, que utilizaram uma metodologia consagrada internacionalmente. Dentre as várias conclusões, concluíram que 80,6% dos crimes pesquisados não são notificados à polícia. Ou seja, em média, a cada cinco crimes, a polícia fica sabendo de apenas um. Somente essa conclusão já é suficiente para entender a importância da pesquisa de vitimização, que é realizada desde 1972 nos Estados Unidos (duas vezes por ano) e desde 1982 no Reino Unido (a cada dois anos até 2000 e anualmente desde então).


Taxa de notificação por crime.

Do gráfico percebe-se que há muita variação nesse índice. As pessoas notificam à polícia acerca do roubo dos veículos quase em todos os casos porque precisam do boletim de ocorrência para dar entrada em seus seguros. Já em casos de discriminação, agressão ou ofensa sexual, tendem a considerar a ocorrência desimportante ou a polícia incapaz de fazer qualquer coisa sobre o caso.

Há outra variação que é ainda mais chocante. Em análise feita por este autor dos dados da pesquisa, chega-se à conclusão de que pessoas negras notificam à polícia menos do que pessoas brancas em praticamente todos os crimes analisados, com exceção de roubo de veículos (pessoas brancas responderam mais que o veículo foi recuperado ou o crime não foi importante como razão para não terem notificado). Ou seja, a subnotificação não é um fenômeno homogêneo: tem raça.

A pandemia trouxe à tona a importância do olhar crítico às estatísticas de saúde, mas esse aprendizado deve ser expandido para outras áreas. O modo como falamos de crime no Brasil contribui com o silenciamento da vitimização de milhões de pessoas (com gênero e cor definidos) e leva a políticas públicas muitas vezes pautadas em números que falam pouco sobre a complexidade da realidade. É preciso maior variedade de dados, principalmente através de pesquisas de vitimização. Caso contrário, permaneceremos numa luta quixotesca contra moinhos de vento enquanto a violência no país permanece vitimizando milhões.

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